terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Prefiro rosas, meu amor, à pátria

«Balanço patriótico:

Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúsio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, bêsta de nora, agùentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalépsia ambulante, não se lembrando nem donde vem,nem onde está, nem para onde vai; um povo, emfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional,--reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta;

Um clero _português_, desmoralizado e materialista, liberal e ateu, cujo vaticano é o ministério do reino, e cujos bispos e abades não são mais que a tradução em eclesiástico do fura-vidas que governa o distrito ou do fura-urnas que administra o concelho[1]; e, ao pé dêste clero indígena, um clero jesuítico, estrangeiro ou estrangeirado, exército de sombras, minando, enredando, absorvendo,--pelo púlpito, pela escola, pela oficina, pelo asilo, pelo convento e pelo confissionário,--fôrça superior, cosmopolita, invencível, adaptando-se com elasticidade inteligente a todos os meios e condições, desde a aldeola ínfima, onde berra pela bôca epiléptica do fradalhão milagreiro, até à rica sociedade _elegante_ da capital, onde o jesuìtismo é um dandismo de sacristia, um beatério chic, Virgem do tom, Jesus de high-life, prédicas untuosas (monólogos ao divino por Coquelins de fralda) e em certos dias, na igreja da moda, a bonita missa encantadora,--luz discreta, flores de luxo, paramentos raros, cadeiras cómodas, latim primoroso, e hóstia _glacée_, com pistache, da melhor confeitaria de Paris;

Uma burguesia, cívica e políticamente corrupta até à medula, não discriminando já o bem do mal, sem palavra, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados (?) na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provêm que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro;

Um exército que importa em 6.000 contos, não valendo 60 réis, como elemento de defesa e garantia autonómica;

Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; êste criado de quarto do moderador; e êste, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do país, e exercido ao acaso da herança, pelo primeiro que sai dum ventre,--como da roda duma lotaria;

A Justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara a ponto de fazer dela um saca-rôlhas;

Dois partidos monárquicos, sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, na hora do desastre, de sacrificar à monarquia ou meia libra ou uma gota de sangue, vivendo ambos do mesmo utilitarismo scéptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se amalgamando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguêm deu no parlamento,--de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar;

Um partido republicano, quási circunscrito a Lisboa, avolumando ou diminuindo segundo os erros da monarquia, hoje aparentemente forte e numeroso, àmanhã exaurido e letárgico,--água de poça inerte, transbordando se há chuva, tumultuando se há vento, furiosa um instante, imóvel em seguida, e evaporada logo, em lhe batendo dois dias a fio o sol ardente; um partido composto sobretudo de pequenos burgueses da capital, adstritos ao sedentarismo crónico do metro e da balança, gente de balcão, não de barricada, com um estado maior pacífico e desconexo de vélhos doutrinários, moços positivistas, românticos, jacobinos e declamadores, homens de boa-fé, alguns de valia mas nenhum _a valer_; um partido, emfim, de índole estreita, acanhadamente político-eleitoral, mais negativo que afirmativo, mais de demolição que de reconstrução, faltando-lhe um chefe de autoridade abrupta, uma dessas cabeças firmes e superiores, olhos para alumiar e bôca para mandar,--um dêsses homens predestinados, que são em crises históricas o ponto de intercepção de milhões de almas e vontades, acumuladores eléctricos da vitalidade duma raça, cérebros omnímodos, compreendendo tudo, adivinhando tudo,--livro de cifras, livro de arte, livro de história, simultaneamente humanos e patriotas, do globo e da rua, do tempo e do minuto, fôrças supremas, fôrças invencíveis, que levam um povo de abalada, como quem leva ao colo uma criança;

Instrução miserável, marinha mercante nula, indústria infantil, agricultura rudimentar;

Um regime económico baseado na inscrição e no Brasil, perda de gente e perda de capital, autofagia colectiva, organismo vivendo e morrendo do parasitismo de si próprio;

Liberdade absoluta, neutralizada por uma desigualdade revoltante,--o direito garantido virtualmente na lei, posto, de facto, à mercê dum compadrio de batoteiros, sendo vedado, ainda aos mais orgulhosos e mais fortes, abrir caminho nesta porcaria, sem recorrer à influência tirânica e degradante de qualquer dos bandos partidários;

Uma literatura iconoclasta,--meia dúzia de homens que, no verso e no romance, no panfleto e na história, haviam desmoronado a cambaleante scenografia azul e branca da burguesia de 52, opondo uma arte de sarcasmo, viril e humana, à frandulagem pelintra da literatura oficial, carimbada para a imortalidade do esquecimento com a cruz indelével da ordem mendicante de S. Tiago;

Uma geração nova das escolas, entusiasta, irreverente, revolucionária, destinada, porêm, como as anteriores, viva maré dum instante, a refluir anódina e apática ao charco das conveniências e dos interesses, dela restando apenas, isolados, meia dúzia de homens inflexos e direitos, indenes à podridão contagiosa pela vacina orgânica dum carácter moral excepcionalissíssimo;

E se a isto juntarmos um pessimismo canceroso e corrosivo, minando as almas, cristalizado já em fórmulas banais e populares,--_tão bons são uns como os outros, corja de pantomineiros, cambada de ladrões, tudo uma choldra, etc. etc._,--teremos em sintético esbôço a fisionomia da nacionalidade portuguesa no tempo da morte de D. Luís, cujo reinado de paz podre vem dia a dia supurando em gangrenamentos terciários.»

Guerra Junqueiro


Assim escrevia Guerra Junqueiro em A Pátria (1896) acerca do estado da nação ao tempo do Ultimatum. Lendo isto surpreendo-me com a estranha e inquietante actualidade da descrição (salvo as idiossincrasias do tempo), surpreendo-me com a estranha e inquietante estagnação, surpreendo-me com o estranho e inquietante diagnóstico. Mais a mais quando, olhando retrospectivamente, esses anos do início do reinado de El-Rei Dom Carlos I me parecem infinitamente mais excitantes, infinitamente superiores aos tempos em que vivemos. Quanto mais não seja porque a qualidade das elites – em comparação – era infinitamente superior. E isso entristece, isso amesquinha, isso inquieta. Ler este texto é perceber que volvidos mais de 100 anos os vícios são os mesmos, os pontos fracos permanecem, as podridões grassam nos mesmos lugares. Nada parece ter mudado! Tirando a evolução material decorrente da evolução conjuntural do mundo. Tirando isso mais nada!

E quase tudo me separa deste homem! Não só o tempo, que isso é só calendário. Mas as opiniões, as influências, as posições: foi este um dos grandes panfletários do republicanismo português, movimento que, se compreendo nas suas bases ideológicas e sociais, pouco prezo por ser contrário a tudo o que acredito e por o considerar directamente responsável por mais um passo no caminho lodoso da decadência. Foi também este homem que foi (malgré
tout o que escreveu sobre o Partido Republicano Português) "Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário da República Portuguesa junto da Confederação Helvética", que é como quem diz, embaixador da 1ª República, esse regime tão belo e tão justo que tanta saudade deixou no coração dos portugueses… (tanta, tanta, que se atiraram para os braços do Professor Doutor Salazar como frágeis donzelas em apuros…) Dedicou este homem a sua vida a apontar as falhas da nação à Coroa, quando eu acho precisamente o contrário: foi essa mesma Coroa que salvou a Nação, durante século e séculos, de se confrontar com a sua mediocridade.

Mas encontramo-nos aqui, nesta morada, neste chão, nesta khôra onde a pátria se esvai, onde a pátria se esquece. Onde a pátria se chora. Encontramo-nos pois no patriotismo, na sua amargura, na sua orfandade (bem, e também nos encontraremos sempre na defesa da bandeira azul e branca como a vera bandeira portuguesa!). No céptico pessimismo que me inspira. Ou pelo menos na indiferença que tudo isto me ameaça provocar. Vem-me à memória o amargo recitar de uns versos que cito abundantemente, de um poeta que tenho aprendido a gostar lentamente, mas que, aqui e agora me apetece ouvir e dizer silenciosamente:

Prefiro rosas, meu amor, à pátria,
E antes magnólias amo
Que a glória e a virtude.

Logo que a vida me não canse, deixo
Que a vida por mim passe
Logo que eu fique o mesmo.

Que importa àquele a quem já nada importa
Que um perca e outro vença,
Se a aurora raia sempre,

Se cada ano com a primavera
As folhas aparecem
E com o outono cessam?

E o resto, as outras coisas que os humanos
Acrescentam à vida,
Que me aumentam na alma?

Nada, salvo o desejo de indiferença
E a confiança mole
Na hora fugitiva.

Ricardo Reis

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