terça-feira, 12 de maio de 2009

Terreiro abaixo

Infelizmente Portugal sofre de um lamentável síndrome de novo-riquismo. Por cá a história é mal tratada e vilipendiada, a língua é abastardada, o património é deixado ao Deus dará. Desconheço qual a raiz do problema (se ela for diagnosticável ou identificável), mas sei que isso me irrita absoluta e infinitamente. No campo do património essa tendência é mais notória, mais facilmente identificável, e, se quisermos, mais irritante ainda. Nunca um monumento está em paz em Portugal: ou é deixado à sua triste ruína, ou é "atacado" por enxames de arquitectos e outros que tais que, desrespeitando na maior parte das vezes o que está, querem sempre deixar uma marca, fazer um contraste, realçar um aspecto, ou seja: marcar território como os animais (e ainda há-de aparecer algum que marque efectivamente território como os animais e ainda lhe chame intervenção urbana e arte contemporânea! Garanto que ainda há-de aparecer!). Se isto foi apanágio na nossa história arquitectónica, tornou-se mais grave no século XX com as noções de "património" e de "conservação" do mesmo. Dos conceitos puristas da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais do Estado Novo, aos dislates do "poder autárquico" analfabeto da Terceira República, os casos são (infelizmente, também) quase infinitos. Aliás, estou convencido que, fôssemos um país rico, e já havíamos arrasado grande parte do nosso património para dar lugar a "conceitos contemporâneos"… O que me parece que esta gente não entende é que não vão inventar o mundo: para o bem e para o mal ele já cá está e aquilo que eles podem fazer é reinventá-lo – quando for caso disso, quando houver necessidade disso, quando isso for necessário. Mas não: as cabecinhas pequeninas não sabem o que é "restaurar", "renovar", "reabilitar" sem meterem o bedelho, que é como quem diz, sem darem a mijadela no canto!


Graças a isto temos praças e ruas com meia dúzia de nomes (variam consoante as épocas, os regimes ou os gostos dos fregueses…), temos praças e ruas que de tão incaracterísticas já ninguém sabe quando apareceram, como apareceram e qual o seu uso. Ao longo dos tempos vamos acumulando estilos e gostos e, no fim, o que resta, é uma confusão que ninguém percebe muito bem, mas a que se chama sempre "moderno" ou "contemporâneo"…




Deu-lhes agora para atacar o Terreiro do Paço / Praça do Comércio (lá está!). Não contentes com, ainda há uma dúzia de anos, a remodelação que lá foi feita haver devolvido a placa central aos peões (com a feliz retirada do parque de estacionamento novo-rico que por lá havia), eis que é preciso (de novo) devolver a praça aos peões! E, aproveitando umas obras necessárias que já deviam ter sido feitas por altura de outras igualmente necessárias (um dia saberemos quanto nos custam estas brincadeiras), lá apareceu o inefável e corriqueiro projecto para "revitalizar a praça". A proposta (daquelas propostas que, à portuguesa, são quase imposições e pontos de honra dos democratas cá do burgo) é, no mínimo, um crime de lesa património. No máximo, uma anedota. Eis que as alminhas que a conceberam, no fundo das suas cabecinhas iluminadas pela modernidade vanguardista, lá resolveram desencantar o piso que deu nome ao lugar (terreiro), propondo pois que a placa central seja coberta com "um conglomerado de saibro ou gravilha com resina". Hã? Não contentes, e já deslumbrados com os seus conhecimentos de história, propõem que, nos passeios junto às arcadas (agora já não se dizem "Ministérios" porque as cabecinhas até isso querem expurgar do lugar) sejam desenhadas linhas citadoras das linhas das cartas de marear quinhentistas. Hã? Para além disso, e porque somos todos atrasados mentais, propõem que seja construída uma espécie de passarela (o que eles precisavam era da passarola de Frei Bartolomeu para desandarem daqui para fora!) a ligar o Arco da Rua Augusta à Estátua Equestre de D. José I e desta ao Cais das Colunas (neste novo projecto transformado num apêndice circular), a fim de marcar um percurso até ao rio. Hã? Ao que parece também querem subir ligeiramente a cota da placa central para que a vista do rio se afirme (porque o Tejo é um "ribeirito" que quase ninguém nota por aquelas bandas, claro está!). Hã? E nas "arcadas", libertas do peso levemente maçador dos Ministérios, querem esplanadas e hotéis e outros que tais.




Podeis apreciar aqui a dimensão da tragédia:




Terreiro do Paço: História, Presente e Futuro




Frente Tejo assume opção pela redução «drástica» de trânsito




Novas imagens do futuro Terreiro do Paço já foram apresentadas




Opinião: Terreiro do Paço - Que futuro?




Losangos para o Terreiro do Paço pouco consensuais mas calçada não é obrigatória


Do Terreiro do Paço (porque we'll always have paris, mas quem nos tira a luz de Lisboa e o Tejo tira-nos tudo, não é Pedro?)




Hã???




Sinceramente não sei se chore, se ria, com tanto disparate junto. O Terreiro do Paço (eu prefiro o nome antigo porque é mais emblemático do que sempre por ali se passou, desde D. Manuel I) é a grande praça lisboeta. Minto: é a grande praça de Portugal! Goste-se ou não, foi para isso que foi concebido, primeiro no tempo da Carreira das Índias, depois, no tempo da Carreira do Brasil e da reconstrução "pombalina" (o nome Praça do Comércio é, em si, todo um programa político do desenvolvimento mercantilista do Reino e do entendimento que então se fazia do que eram os negócios do Reino). É então, desde sempre, desde o seu nascimento como grande praça de poder (na transição do século XV para o século XVI), a grande sala de visitas de Portugal. Lá se fez a história dos últimos 500 anos lusitanos. A partir de lá se ergueu um Império e (curiosamente!) lá também esse Império se desfez! ("É só fumaça") Na reconstrução da Baixa posterior ao Terramoto de 1755 é curioso verificar que, não só a memória do antigo Terreiro do Paço foi mantida, como foi engrandecida com as linhas que – então – gizaram uma cidade moderna e cosmopolita. Desde então, aquela é a grande praça da encenação do Poder em Portugal (e, concomitantemente, em tudo o que foi o Mundo Português). Aquele é o grande palco da Política e do Poder lusófonos! E não perceber isto é não perceber nada do que foi Portugal, pelo menos, na última metade de milénio!




Ora, é precisamente isso que este projecto põe em causa. A dignidade do grande palco do Poder lusitano (e um dos raros exemplos no mundo com a dimensão, o equilíbrio, a magnitude e a beleza do nosso Terreiro do Paço).




Concebido para ser uma grande e gigantesca "praça real" (por oposição às mais pequenas e mais populares Praça do Rossio/D. Pedro IV e Praça da Figueira/D. João I), dominado pela figura do monarca absoluto (naquele absolutismo à portuguesa tão diferente do restante europeu), D. José I, a cavalo, em traje de gala, pisando as "víboras" que atacam o seu prestígio (pelos vistos não calcou tantas quantas seriam necessárias!), o Terreiro do Paço foi concebido a pensar na materialização do Poder na arquitectura. E foi concebido para encenar a ligação de Lisboa ao Tejo e de Portugal aos Oceanos (tal como, noutra escala e noutro "mundo", a Praça de S. Marcos de Veneza foi concebida para projectar o poderio da grande cidade-estado sobre o Adriático). Não se compreende, portanto, porque é que, ao invés de encontrar uma simbiose entre a "calçada portuguesa" (que Portugal legou ao mundo, do Rio de Janeiro a Macau) e o lioz característico da região (e dos pisos) de Lisboa (julgo até que era o que lá estava), a opção arquitectónica – discutível como todas, ao invés do que parece perpassar do discurso vitimizante dos arquitectos – tenha apostado no incaracterístico e de mau gosto "composto de saibro ou gravilha". É que se é para citar o tempo do terreiro também podem começar a organizar uns autos de fé (contemporâneos do piso!) e umas touradas, ou a espalhar sacos de pimenta e bostas de cavalo para dar maior realismo à coisa… Quanto às "linhas cartográficas" nos passeios laterais também não julgo que se enquadrem minimamente no perfil iluministo-racionalisto-burguês que presidiu ao desenho da praça e da restante Baixa lisboeta. Que isso seja feito no Parque das Nações estou totalmente de acordo e até acho valorizador – no Terreiro do Paço acho uma idiotice pindérica. Tão-somente. Já no caso da "passarela" ou da alteração da forma do Cais da Colunas acho que são propostas tão inimagináveis que nem merecem referência mais aprofundada; e por um simples motivo programático: se há coisa que a "arquitectura pombalina" ensina é a não haver desperdício, não haver barroquismos e a tudo ser útil e racional – essas alterações não são!




Já na questão do alargamento dos passeios laterais acho que deve haver alguma ponderação. Sendo eu absolutamente favorável a uma redução do tráfego automóvel no Terreiro, não sou de todo favorável àquilo que é proposto (se acho bem que a Rua do Arsenal fique reservada aos trasportes públicos, a ideia de haver apenas duas faixas de atravessamento marginal parece-me outro disparate lírico que, ademais, provocará um estrangulamento nessa importante via de comunicação da cidade - o mínimo aceitável são duas faixas para cada sentido). Isto porque, ou as imagens virtuais falham muito, ou os passeios vão ficar absolutamente desalinhados com as ruas da Baixa (do Ouro e da Prata) e isso parece-me mais um aborto geométrico numa zona onde a geometria é tudo! Para além disso ouço há muito esta ideia do Terreiro do Paço como uma "praça popular", fruída por imensa gente por lá abancada em esplanadas e afins… Se não julgo que aquela seja a praça mais indicada para isso (o seu tamanho é impeditivo desse ambiente de proximidade familiar), julgo também que, a não ser que a abandalhem com pára-ventos altamente duvidosos, dificilmente o seus passeios serão agradáveis para a fruição diletante urbana. E até penso que não é desejável: para isso existe o Rossio, existe a Praça da Figueira (se bem que os tristes ventos da modernidade saloia também aí tenham relegado a Estátua Equestre do Mestre de Aviz para um canto subalterno), e poderia existir a Praça do Município (fosse ela viva), ou o Campo das Cebolas.




Sou, por isso, favorável à manutenção do Terreiro do Paço como grande praça histórica e cénica de Lisboa e de Portugal. Com fachadas amarelas e lioz e calçada portuguesa no chão. Com alguns bancos discretos e sóbrios. Sem árvores (se bem que goste das imagens que mostram uma praça orlada com árvores, julgo que o seu projecto arquitectónico recusa a sua existência: para isso existem o Rossio e a Figueira, insisto!), mas podendo muito bem receber uns vasos discretos com arbustos bem cortados. Com esplanadas nas arcadas, se isso não implicar grandes adereços (se há coisa que acho que deve ser apreciado é o despojamento, e ainda assim extraordinária beleza, daquela praça!). Com os ministérios no sítio que foi criado para eles (se compreendo que alguns terão de sair porque as instituições mudam, julgo que pelo menos dois, por aquilo que representam, lá devem permanecer: O Ministério das Finanças e o Ministério da Justiça), e a sede do Supremo Tribunal, ou seja, a sede absoluta (e já não absolutista) do Poder em Portugal. Pelo menos isto. E se querem mais gente a "fruir" a praça, experimentem reabilitar a Baixa, atrair gente para lá viver e talvez tenham surpresas. E sem insufláveis publicitários, "jardins portáteis" e outras parvoeiras: o Terreiro do Paço não tem de ser animado como uma feira permanente - um dos seus encantos, volto a repeti-lo, é o despojamento, é o espaço, é a luz, é a abertura de horizontes...




E a propósito: que é feito de um projecto que todos pagámos (e pagamos sempre todos, dislates ou não), apresentado pouco antes da partida do Sr. Barroso para Bruxelas onde, a par da reabilitação da Baixa, previa a reabilitação do eixo Santa Apolónia – Cais do Sodré com a ideia (magnífica, parece-me!) de, na Ribeira das Naus, criar uma zona de exposição (citação do antigo Arsenal da Marinha) com réplicas dos navios dos Descobrimentos visitáveis pelos turistas – e, o que é melhor – no preciso local de onde eles partiam e onde chegavam das carreiras imperiais? Local para onde iria a (triste) Fragata D. Fernando e Glória, recuperada para a Expo 98 e novamente votada ao apodrecimento inglório da Nação que lhe coube procurar enriquecer?




E já que falamos nisso, que tal montarem umas carreiras de barcaças turísticas que partindo (do Cais do Sodré, de Santa Apolónia, de Belém, do Parque das Nações ou de outro lugar qualquer) aportem os turistas ao Cais da Colunas, dando-lhes a "visão dos reis" de verem crescer diante dos seus olhos a beleza do Terreiro do Paço sem "travestismos", mas apenas ele, simbólico e belo, austero e imperial, doce e sereno, no permanente enamoramento de Lisboa com o Tejo? Isso, sim, era moderno! E catita!









© Estátua Equestre de D. José I.

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