sábado, 28 de fevereiro de 2009

Festival

Sou tradicionalista. E por isso, apesar de reconhecer a sua actual irrelevância e desprestígio, não resisto a botar o olho no Festival RTP da Canção (bem, e no da Eurovisão, como é óbvio, porque é um grande espectáculo europeu, se não de música, pelo menos de humor com as aves raras que os vários países lá vão enviando…). Eu sei, eu sei, isto é coisa para tratar com o psicanalista e para ficar no segredo da confidencialidade terapeuta-paciente, mas não resisto a contar! Isto porque o Festival é um sintoma, é um sinal do país que somos, e do que os outros são. E no nosso caso, a pobreza musical verificada no festival que hoje se realizou, é um sintoma de como por se faz música, se aprende música, se aprende a cantar. E o diagnóstico não é bonito: de concorrentes que não sabem cantar, a músicas (?) cuja linha melódica (?) eu seria capaz de realizar num órgão caseiro, a música ligeira portuguesa anda pelas ruas da amargura. E não nos esqueçamos que houve um tempo em que, para além de ser um acontecimento que parava o país (e eu ainda me lembro bem disso!), o Festival RTP da Canção foi responsável por inúmeros temas que fazem parte da memória e do património musical português dos últimos 45 anos. De Simone de Oliveira a Madalena Iglésias, de Ary dos Santos ao Maestro José Calvário, de Carlos do Carmo a Carlos Paião, o Festival foi responsável por grandes e inesquecíveis criações da música portuguesa. Foi. E esse é o problema. Aliás, basta sintonizar uma qualquer estação de rádio para perceber que o aumento de criadores e intérpretes no mundo da música nacional não trouxe nenhuma benesse (muito pelo contrário!) à mesma! E isto apesar das inenarráveis cotas para obrigar à audição de música nacional…

Ora o que se viu neste Festival foi o arrastar de um espectáculo quarentão que insiste em respirar apesar da (evidente) estafa. Viu-se também o erro crasso que a RTP tem vindo a cometer em todos estes anos em que aboliu a tradicional votação distrital: se o sistema não tivesse reincorporado (agora em parceria com o irritante "voto interactivo" do público) o sistema tradicional de votação, teríamos assistido à eleição da Floribela Luciana Abreu, vestida de Fadinha Nazarena, gritando o slogan de Obama, como representante portuguesa no maior festival de música europeu, visionado do Atlântico às estepes asiáticas por à volta de cem milhões de espectadores! Graças à mudança do sistema de votação, a representação portuguesa estará a cargo dos Flor-de-Lis, com Em todas as esquinas do amor, um tema onde o rastro da música tradicional portuguesa é evidente, e bem conseguido. Aliás, face ao panorama esta pareceu-me a única opção viável, não só entre as doze finalistas, como entre as 24 semi-finalistas (sim que eu também votei na pré-selecção, e sim, o Doutor Freud explicá-lo-ia!) como podeis comprovar neste vídeo:



A questão de base disto prende-se com uma certa corrente revolucionária e moderna que defende que o estudo dos clássicos, do cânone, da norma, é perfeitamente dispensável. Lá está, não é! O estudo do cânone, o estudo do clássico prepara para todos os outros tipos de arte hodiernos – seja na música, na dança, no teatro, na pintura, na literatura, etc – cuja definição é muitas vezes feita (lá está) contra o cânone, invertendo-o, rasgando-o, recusando-o. Mas conhecendo-o. O clássico é sempre a base de qualquer arte, e não vale a pena iludi-lo. E isso no caso português é tão mais grave quanto já se sabe que, infelizmente por cá, as coisas se fazem sem rigor, desenrascando, empurrando com a barriga. Ora o resultado está à vista! Com a honrosa excepção do último ano (e deste, sublinhe-se) o panorama musical do Festival tem sido deprimente e não deixou uma só música para o futuro. Não deixou memória, pois!

Outra questão é o sistema de voto. De há uns anos para cá instituiu-se nas nossas ditaduras mediáticas o sistema de voto interactivo do espectador como sendo algo democrático. Ora, se eu percebo o negócio que está por detrás disto, tenho de recusar absolutamente a suposta democraticidade da coisa. E a sua suposta legitimidade. O voto do espectador enviesa sempre a apreciação do valor da obra/pessoa/etc para a simples fórmula "com quem tenho mais afinidades". E isso, como o Festival da Eurovisão claramente demonstra nos últimos anos com a adopção da ditadura do televoto, dá mau resultado e distorce os resultados. Aliás, pergunto-me hoje, se a votação fosse mais equilibrada há 3 anos, se Portugal não teria sido representado (e que bem!) pela sua matriz musical transmontana. E isto porque considero que num festival como o é o da Eurovisão, num tempo de globalização e de crescente integração transnacional (sob a tutela e a hegemonia anglo-saxónica), um país como o nosso deve reforçar e apostar naquilo que lhe é tradicional, naquilo que sempre fez bem, naquilo que o une, que o singulariza, que o identifica. Renovando (claro está) a tradição, mas rebuscando-a, bebendo n seu curso inesgotável e caudaloso. Nela se fundando como quem enterra os dedos na terra e lhe sente o cheiro. Porque a diversidade está lá toda (não fossemos herdeiros de Lusitanos, de Celtas, Gregos, de Romanos, de Judeus, de Suevos, de Visigodos, de Árabes, de Africanos, etc, etc, etc). Sempre esteve! Ora diga-se lá se a Europa não merecia ser brindada com um espectáculo destes:


sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

À sombra do embondeiro

Sou contra a pena de morte. Irredutivelmente. Fico orgulhoso por viver no país que pioneiramente (1867) aboliu a pena capital na Europa (facto largamente celebrado por Vítor Hugo, quando escreveu que “(…)Está pois a pena de morte abolida nesse nobre Portugal, pequeno povo que tem uma grande história. (...) Felicito a vossa nação. Portugal dá o exemplo à Europa. Desfrutai de antemão essa imensa glória. A Europa imitará Portugal .(…)”… outros tempos!), não a aplicando de facto já muito antes, para as mulheres desde 1772 e para os homens desde 1846 (houve dois únicos exemplos prévios: San Marino (1852) e a Repubblica Romana (1849), ou seja, Estados totalmente alheios às potências europeias de então - e que, inclusive, no caso romano, não chegou a durar cinco meses). Portugal foi assim, a primeira potência europeia a abolir a pena de morte. E isso é um feito dos maiores que realizámos enquanto povo!

Mas confesso que ao ler coisas como estas,

O insulto de Mugabe ao povo do Zimbabué

Mugabe em dificuldade para pagar festa de anos

Mugabe: expropriações de brancos vão continuar


a minha caridade quase que encontra um limite! Fico fora de mim ao ver coisas destas, infelizmente comuns - embora não tão graves - na África pós-colonização europeia (o caso Angolano, com o país na mão de José Eduardo dos Santos & Companhia é outro exemplo, infelizmente, já clássico). Uma descolonização (seja isso o que for) em nome daqueles que, hoje, morrem às mãos dos seus libertadores, dos seus heróis, dos seus eleitos. Daqueles que por eles são explorados e vitimizados. Uma descolonização feita em nome da tão proclamada igualdade para acabar com o racismo e a discriminação... Pois!...

E é nestas horas que quase (quase quase quase) acho que ao Sr. Mugabe só um destino seria justo: o de Mussolini, mas reeditado na versão africana pendurado em embondeiro para as feras e os maus espíritos se divertirem. E nem sei se, em comparação, não foi Mussolini muito menos merecedor do fim do que este tiranete hediondo…

Não será pois de estranhar que, volvidos mais de 30 anos, as vozes que desconstroem o cliché “exploração colonialista europeia/colonização europeia em África” (nomeadamente no caso português que é o que nos diz respeito) se comecem a fazer ouvir e comecem a questionar a patranha hist(é)órica que lhes foi impingida!



© Imagem aqui

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

The Carnival Is Over

Quarta-feira de Cinzas






















© Aqui


Autoepitafio

Mal poeta enamorado de la luna,
no tuvo más fortuna que el espanto;
y fue suficiente pues como no era un santo
sabía que la vida es riesgo o abstinencia,
que toda gran ambición es gran demencia
y que el más sórdido horror tiene su encanto.
Vivió para vivir que es ver la muerte
como algo cotidiano a la que apostamos
un cuerpo espléndido o toda nuestra suerte.
Supo que lo mejor es aquello que dejamos
-precisamente porque nos marchamos-.
Todo lo cotidiano resulta aborrecible,
sólo hay un lugar para vivir, el imposible.
Conoció la prisión, el ostracismo,
el exilio, las múltiples ofensas
típicas de la vileza humana;
pero siempre lo escoltó cierto estoicismo
que le ayudó a caminar por cuerdas tensas
o a disfrutar del esplendor de la mañana.
Y cuando ya se bamboleaba surgía una ventana
por la cual se lanzaba al infinito.
No quiso ceremonia, discurso, duelo o grito,
ni un túmulo de arena donde reposase el esqueleto
(ni después de muerto quiso vivir quieto).
Ordenó que sus cenizas fueran lanzadas al mar
donde habrán de fluir constantemente.
No ha perdido la costumbre de soñar:
espera que en sus aguas se zambulla algún adolescente

Reinaldo Arenas


...uma dica para perceber porque é que supostamente (ninguém imparcial o viu, logo não o pode afirmar) os cubanos choraram ao ver Fidel Castro a andar na rua... Eu também choraria e choraria e choraria...

The Carnival is over!

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Sopro

© Coucelo

Vejo-te chegar como a gazela vê chegar o incêndio.
Tua língua rasga o torpor das savanas austrais,
é raio rasgando-me a pele e a sede.
Cuidadosa e lentamente, aqui e acolá,
sopras pequenos fogachos, delícias de pirómano
que ardem devagar devagarinho na carne toda
em sulcos, lentamente, por baixo e por dentro.


Vens, como uma trovoada de chamas
inundar-me de ti, afogar-me na tua boca,
e divertes-te a saltar de charco em charco
semeando pequenos peixes verdes e azuis
como berlindes jogados e esquecidos,
à medida que o fogo se vai consumindo
e a cinza é toda de lava fumegante.


Do teu orvalho despontam verdes raízes,
todos os meus músculos de relva fresca,
um tapete de flores semeado a olho
mil cores de mil feitios e mil cheiros…

Um milagre recebido de joelhos e olhos rasos,
a explosão primordial toda fechada num casulo!


E depois, deitas-te a meu lado,
minhas mãos exaustas, suadas,
nas tuas mãos exaustas, suadas,
a pele toda ocre, o cheiro a terra mexida.
Nos teus olhos de amêndoas da lua
me perco, me banho, me purifico.
Como o dente-de-leão despedaço-me ao vento.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Deixo-te as flores


Deixo-te as flores que amei e amo ainda - as silvestres em primeiro lugar.
Por elas muitas vezes me perdi nos montes, namorei os espinhos, construí pontes e jangadas, competi em altura com as árvores.
E deixo-te as outras, todas as outras. As glicínias e as dálias. Os lírios e os goivos. As anémonas e os jasmins. Os crisântemos.
Todos os jardins da terra e do mar.
A morada
dos dinossauros
e dos hipocampos.

Albano Martins

sábado, 14 de fevereiro de 2009

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Arestas

Por vezes pico-me nos teus espinhos. E magoo-me. Magoo-me contigo, com as tuas faltas e com os teus excessos. Com os teus silêncios e com a tua beleza.

Mas antes mesmo de me picar já te sarei. Já te perdoei. Já te sorri.

Pico-me e acaricio as arestas até que já não me incomode. Depois continuo a aprender-te. Os teus limites, as suas formas, as suas profundidades, os seus gumes. E sigo eternamente. E a transportar-te. E_ternamente.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Um dia uma vida

© João Abreu

Não vazes tantas vezes vozes rente ao vento
e não escutes os pássaros nem mesmo o mar
não oiças nem sequer o vento se soprar
ouve o tempo passar escuta a sua voz
pois o tempo tem voz o tempo fala
Está atento abertos os ouvidos ouve
a vida é uma vasta música suave
É esta praia esta dúzia de casas
curiosas do mar que as lambe lá em baixo
a verdadeira capital da noite
Nos limites marítimos do burgo
de casas calmas sobre as pálpebras da morte
dormindo à luz da lua sobre as ondas
que trocam mais abaixo espuma com as rochas
nos extremos atlânticos de aquesta povoação precária
o homem abafado pelo alvo algodão do sono
transforma-se num peixe e devora esse peixe
sem pressentir sequer que a si mesmo se devora
Outras vezes o homem sempre vítima do sono
afaga na almofada um vulto imaginado
e dá-lhe mesmo um nome sem saber
que nomear as coisas é criá-las
Entretanto a sereia sulca o nevoeiro
nas masmorras erguidas na orla do sonho
depois de o náufrago nadar nu nos lençóis do leito
sob a noite cerrada sobre a cru cruel
concórdia do convénio conjugal
E há sonhos e segredos vislumbrados véus
nos que dormem nas casas onde o mar mergulha
vêm flocos de neve à tona da memória
e doses simples ou dobradas meias doses
de uma lua embalada em lenta trajectória
sulcam o céu de telha ou de betão das construções
Inexploradas conchas sobressaltam os caminhos
calcados por aqueles que o mar chama
e favas e feijões inaugurais rompem a terra
sensível à semente que a fecunda
cavada num convívio de indistintos mortos
que em sua noite metafórica articulam só
a imutável voz possível às inscrições pétreas
Mas já o coro das primeiras aves ergue um cântico
na vasta catedral do céu ainda indeciso
quando a alva alveja os sonhos dos vizinhos
embora ainda os embale o naufrágio do sono
A povoação ondula como um lago
levemente mexido pela névoa que inaugura
o espaço disponível para o dia
Ao sol horizontal saem de casa os habitantes
que após o sol não são os mesmos de antes
O tempo passa ouve o tempo passa
faz um breve ruído e passa irrefragável incontido
Já o primeiro sol surge e retira
a sonolenta capa que cobrira cada face
e as gaivotas filhas da manhã
trazem no bico a fímbria da recente luz
E começam as colunas de neblina a irromper
das chaminés de renda das recém-despertas casas
As árvores são verdes é sólido o mar
o tempo passa há raparigas novas
sinto-me em paz as coisas estão no seu lugar
Uma criança chora a terra rola há roupa suja
eu morro bem o sei mas o mundo melhora
Para quê destruir um por um os relógios
se não existe rosto onde não poise pés o tempo
que é feito de passar como de água o mar?
Sabe-me bem sentar sentir-me vivo
sem ter que sujeitar-me à morte mísera do sono
Leio o futuro nas folhas de chá
e vou verificar se o mar ainda lá está
no extremo ocidental do forte onde as gaivotas
procuram povoar ou abolir a solidão
O sol senhor despótico domina
o vasto principado que ilumina
O tempo continua a emitir a sua voz
Pudesse eu eleger por mim a companhia
decerto levaria apenas árvores ao lado
Um deus somente podia afogar
a cabeça no mar da minha vida
Começo a caminhar na madrugada
entre sardinhas e mulheres saltitantes
e ao chegar ao mar penso pregar
o meu sermão de algas e sargaços sobre a esperança humana
sob o canto dos pássaros e a língua dos vizinhos
Neste jardim só cresce a roupa seca pelo sol
as coisas são ou não não são verdade ou não
o povoado cheira a comida e maresia
e através da vida desafia o mundo o nada
Que hei-de fazer se sou a gata borralheira?
- canta a convulsa rapariga oculta nos arbustos
E em vão voga na expectativa de quem nunca vem
mordiscar-lhe a papoila mole dos lábios
com a sofreguidão da truta ao absorver o anzol
Um forasteiro só certa vez a beijou ao vê-la distraída
mas por mais que esperasse nunca mais voltou
a dar-lhe um beijo só em toda a vida
E o hálito leve de insolentes raparigas
embacia os espelhos da manhã
E quando até mim chegas deus chegou
mulher inesperada meio mulher e meio madrugada
recortada no céu de um homem que desesperou
tantas vezes voltou de mãos cheias de nada
Eu quero para mim parcelas de manhã
delas farei um tempo para mim
um tempo de porvir que se detenha
tempo que se renegue e seja tempo
e que ao negar-se afirme a sua condição
As coisas em redor prodigalizam cor
coisas que se concentram que têm sabor
E vejo como orvalho o teu olhar tombar
primeiro quase sólido e depois vapor
evaporar-se e dissipar-se como halo ou hálito
Teu corpo acolhedor calma baía
recorta-se na luz agora a esta hora
e alegra mesmo até a alegria
Pressinto que vieste e finalmente veio alguém
que verdadeiramente vem sem bem se saber quem
Pões os pés na manhã e tudo são caminhos
a orla do vestido roça no rocio depois do
baile breve na praia iluminada pela lua
muito mais tua do que do planeta
onde vivemos pois à tua volta
é que descreve a lua a sua órbita perfeita
A noiva tem no seu vestido branco óptima mortalha
e tem escovas de dentes iminente vida conjugal
dias de sol inúteis como logo este jornal
por trás do rosto imóvel que prospecta ao espelho
uma última vez antes de ir à casa sobrepor a igreja
O tempo não parou ó noiva é esse o mal
se hoje és imortal oxalá amanhã
leve a terra te seja
em sonhos sempre alguma borboleta sobre ti
desceu e escureceu a própria escuridão
sobre essa silhueta de senhora do olhar
sozinha em vida e pelo ar apenas rodeada
cercada só de terra e na morte isolada
Saíste com a aurora vertical recebeste o meio-dia
escondeste-te na luz perdeste-te na estrada
e não deixaste nada além da tua ausência
As vozes são às vezes vítimas do vento
à criança que foi substitui-se o adulto
cada rosto destrói as sucessivas formas desse rosto
um rosto é um momento
Um homem pisa pedra a pedra uma calçada
e ao pisar a primeira está a última pisada
A gente vai pela rua vai e vem
mas pela vida vai-se e nunca vem ninguém
O som do órgão ultrapassa os azulejos
a mole da igreja e inaugura a primavera
Não oiço a voz do mar oiço o tempo passar
É primavera mesmo sobre a minha idade
sobre os anos que põem pés pesados no meu peito
(eu agora nem mesmo me revejo já
nessas fotografias nessas outras tantas mortes)
A música solar murmura em meus ouvidos
o mar dorme um profundo sono azul
um grupo palrador de pombas arredonda o adro
e ao ver uma gaivota cospe um pescador
para na pesca o não abandonar a sorte
Grandes nuvens me nevam na cabeça
o dia alastra como um canto líquido
e com um mata-moscas procuro matar
o sol em cada raio que devassa os vidros da janela
A luz valsa e verseja em cada pedra
rebenta em ondas na margem do dia
parado como um mar a ventos não sujeito
A terra é musical no meu país
cantava tanto a brisa nas espigas
nas débeis raparigas nas umbrosas oliveiras
quando ao princípio éramos os campos e eu
E nem essa magnífica mulher
de um olhar que apenas por brilhar já transfigura o ar
que nas mãos manipula embrulhos e palavras
consegue afugentar a primavera
que entre dois ladrilhos do comprido corredor
culmina e se concentra numa flor naquela casa
(qual será o futuro dessa flor
que os campos renegou e mal nasceu domesticou
a explosão natural do reino vegetal?)
Boceja a tarde soalheira e sossegada nos
plátanos calmos como o espaço dos domingos
e o mar encosta preguiçoso a fronte
no regaço que a terra intimamente tem
na cúpula do corpo da nutrida primavera
nos confins da aldeia cheia de um odor de amor e mar
Vejo a fazenda a vida ameaçadas por
espumas e brisas de uma cor de esmeralda
e o louvor dos pássaros crepita
no fogo fluvial do mês de agosto
Ó natureza nua mãe do mundo
eu sacrifico apenas ao deus bach esse deus que
numa abóbada de música domina
A solidão rumina neste cabo
onde a névoa se adensa e principia a evocar
a geada caída no primeiro jardim
do homem donde ergueu o voo
a gaivota que agora um arenque devora
E entretanto a tarde não tem mãos a medir
e enquanto não cair os homens e os campos
sujeitam-lhe uns a vida outros a superfície
aceitam-na como uma solução
O sol que nasce põe-se nos teus olhos
e mal os fechas logo a noite desce sobre
um rosto que resume rápidas mulheres
Quando passas eu passo a conhecer de cor inúmeros países
há morangos vermelhos nos teus seios
e arremessam-te olhos curiosas árvores e ávidas janelas
que te deixam na rua puramente nua
enquanto o som do sino soa no teu peito
e o sol se dissolve em teu vestido
Pensam martirizar as tuas ancas
amaldiçoar maldizer o teu nome
e assassinar-te com olhares elaborados
no silencioso e chão laboratório
onde calculam complicadas cúmplices maquinações
tenebrosos embaixadores do país das trevas
O sol suave como um pensamento
despenha-se nas águas entre nuvens
e à minha volta fecha-se esse férreo
abraço conjugal que a sociedade
usa para devassar a intimidade
Mas se eu escancarar de par em par
as portentosas portas de acesso à minha vida
hão-de inundá-la ao mesmo tempo sol e mar
únicos portos para os meus navios
Afoga-se o crepúsculo na noite
como nele se afogara já o dia
e eu velo não venha a morte ver
se pálpebras pesadas me não velam
o olhar minha única defesa
Há magos que de flores fazem raparigas
que devagar se enfeitam para a festa
do fero e feroz fim da luz diária
Os mortos surgem nos seus fatos domingueiros
lágrimas luzem lá onde ontem uns olhos olharam
As ruas são de noite como que canais
por onde só circula a sonolenta escuridão
Saio de casa ou sóbrio como um domingo
ou exuberante e excessivo como um sábado
Vindo da agricultura e da cultura por
folhas de terra e páginas de livros
ordenho umas palavras leves e leitosas
e com elas procuro apreender deter o tempo
obrigá-lo a parar e impedi-lo de passar
Mas oiço-o falar é sua esta voz
Cobre-me o corpo a escuridão e cai sobre ele a chuva
e as nuvens indecisas contra as quais se apoiam
os arcos e abóbadas da noite
solidamente assente em dunas ou colunas
da mais universal obscuridade
comunicam-me a mágoa deste tempo português
e chego a pôr em causa a minha nacionalidade
Há uma luz lunar que ilumina o mar
o asparge pela areia pela maré cheia
o poema de espuma que lhe cabe recitar
e me fala das cinzas a que se reduz
o céu breve e restrito de uma noite
abençoada noite de mulheres
que quando dormem mais estão despertas
e são reais louças e temporãs
Faço uma coisa ou outra e depois disso
é ao túmulo só o sítio aonde tenho de ir
Preciso de dormir e só na pedra tumular
eu poderei poisar de verdade a cabeça
Ingresso para sempre no mais puro escuro
Fui um inveterado tripulante da memória
oiço os passos do tempo sei a minha idade
e deito-me com toda a dignidade
É inútil bater amigos inimigos a esta loisa
onde eu repouso como simples coisa
E o tempo poisa deixa finalmente de passar


Ruy Belo



Hoje, dia do Tempo, dia primevo dos dias primeiros, manhã sempre nova, fresca e pura, renovada ao sol morno ainda, a tarde toda longe de chegar... O tempo, ai o Tempo!

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

100

Com o Pardal na Quinta do Alqueidão de Santo Amaro
(09/02/1909 - 11/05/1986)




Hoje, aqui como , estamos em festa! E hoje e sempre , Tio António, sempre .



sábado, 7 de fevereiro de 2009

O rapto de Europa

Esta última semana é pródiga em notícias incríveis. E por incríveis falo de coisas que me põem os cabelos em pé, que me entristecem, que me fazem lamentar o estado do mundo, e até (nas horas de maior estupefacção), achar que não sou, definitivamente, deste mundo! (e como diria uma velha Mestra, "o segredo é o "deste")

Vamos lá então, sem ordem cronológica, pegar os toiros pelos cornos.

Aborto e UE

Farto até à medula deste tema (desde o último referendo, em que discuti o tema diariamente, durante cerca de 3 meses, até ao puro vómito), volto a ele hoje por duas notícias recentemente saídas na imprensa:

[Apenas um aviso prévio para os que não me conhecem bem, para os que ainda não me conheciam à data, para os que só agora aqui caíram, envolvi-me na campanha do último referendo ao aborto (ou como o politicamente correcto alter-inter-nacional gosta de dizer, a "interrupção voluntária da gravidez") pelo lado do Não. Sem mais demoras, filosófica e politicamente era, sou, e serei partidário do equilíbrio presente na anterior lei, que protegendo os direitos de ambas as partes presentes na equação (criança e pais) – o primeiro dos quais é o direito à vida – contemplava também as excepções comummente admitidas como aceitáveis (do mesmo modo que a Lei admite a auto-defesa como legitimadora de violências extremas, não admitidas em condições normais). Considero a actual lei um erro que nem crasso será, por ser mais grave, por implicar um sério retrocesso civilizacional (com uma capa aparentemente moderna e progressista), por implicar uma concepção de desresponsabilização do homem (sobretudo) e da mulher (a quem agora cabe todo o ónus), por implicar uma queda dos princípios humanistas que defendo e partilho, por significar o afastamento da sociedade liberal onde gostaria de viver.]

Ora bem, esta semana soubemos que o Estado Português foi condenado ao pagamento de uma multa às associações que organizaram a tentativa de atracagem do famoso "barco do aborto", pertencente ao "grupo activista" (seja isso o que for) graciosamente denominado Women on Waves. Ao que parece, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos considera que a decisão do Governo Português significou um limite à "liberdade de expressão". Como não me recordo de ter havido ninguém silenciado (muito pelo contrário!), nenhuma cela do Aljube ou de Caxias foi reaberta para acolher os presos políticos, ninguém foi impedido de exercer livre e tontamente a sua liberdade de expressão (inclusive com os "clássicos" "a barriga é minha" e outros dislates que tais!). Aliás de limites à liberdade de expressão é coisa que as associações de defesa do Sim não se podem queixar, dado o vasto coro de apoio que tiveram na imprensa (dita) de referência. Estranho mundo este em que um Estado (ainda) soberano é condenado internacionalmente por fazer cumprir a legislação nacional! Este caso é tão disparatado e, abrindo um precedente perigoso, mostra tão bem o disparate em que andam as organizações da (dita) "governança mundial" (e que impedirá, a médio e longo prazo, essas mesmas organizações de exercerem o desígnio para que foram criadas, com Justiça, Equilíbrio e Serenidade), que é por demais evidente! Agora, um qualquer movimento que defenda uma qualquer prática punida na legislação de um dado estado europeu, pode queixar-se de falta de liberdade de expressão por não o deixarem realizar as ditas práticas nos termos que bem lhe apeteçam! É verdadeiramente incrível, lá está! E por este caminho (e pelos outros que temos visto com o processo de aprovação do Tratado de Lisboa) muito longe estará esta Europa de ser qualquer coisa senão uma cópia infeliz e disparatada do federalismo americano (para pior, porque lá, cada Estado tem legislação diferente do vizinho e não consta que isso seja um impedimento ao funcionamento do todo, muito pelo contrário: é uma das suas riquezas!)

Também esta semana (ou pelo menos no fim da semana passada) soubemos que, apesar das mentiras do Sim na campanha, o óbvio aconteceu: uma clínica ilegal de abortos foi desmantelada pela polícia, e azar dos azares, até tinha uma mulher a praticar um aborto (e que, num dos artigos que li, apesar da imensa campanha realizada nos últimos meses, apesar de já ter ultrapassado o limite máximo legal para a realização de um aborto, apesar de ter feito um aborto há quatro meses, estava, obviamente, claro está, "pouco informada sobre a nova lei"… Nada que espante no jornalismo que temos, basta lembrar que até casos da década de 60 foram usados há um ano para atacar a lei então vigente. Enfim…). Ora bem, o que acontecerá agora? Será que é um dos "julgamentos da vergonha" que tão abjectos eram? Será que é "uma devassa inqualificável da vida privada" como antes acontecia? (sim, porque qualquer caso de justiça penal não é uma "devassa" da vida privada de alguém…) Será que até haverá condenados? Será que esta enfermeira ainda é uma corajosa e intrépida defensora dos "direitos" das mulheres? Ou não? Fico à espera. Mas o reduzido alarido do caso já me diz alguma coisa… Nem me espantarei se, um dia destes, o processo não for "arquivado por falta de provas" e tudo acabar em águas de bacalhau. Afinal, quando as máscaras caem aos farsantes o que se vê nunca é bonito…

Eutanásia ou Da Civilização que temos

Correndo o risco de parecer alinhar na agenda do Bloco e outros alter-democratas que tais, de Itália chega-nos um caso complicadíssimo, tristíssimo e exemplar de como o político anda pelas ruas da amargura. O Caso Eluana Englaro. Independentemente da convicção que se tenha a respeito do caso (eu admito, não tenho nenhuma resposta definitiva para o caso, já que me parecem estimáveis os argumentos de ambas as partes) tão tocante é a imagem de um pai que quer deixar a sua filha morrer, como o é a defesa do princípio da vida como algo inalienável ao humano. E não tragamos para aqui os argumentos religiosos (apesar de crente, julgo que, ao nível médio do debate, o argumento religioso não ajuda, como pelo contrário, só atrapalha; o que não quer dizer que a Igreja não possa e deva pronunciar-se; quer sim dizer que já que eu não sou clero, é bom que fale por mim, não me limitando à mera comunicação ventríloqua). Está aqui presente (de resto como também na questão do aborto, apesar dela ser reduzida aos argumentos feministo-rançosos da geração beauvoiriana de 68) uma questão civilizacional. Aliás, de maneira enviesada, os defensores da eutanásia recordam-no sempre que colocam os seus adversários no campo da Igreja Católica. Todo o humanismo é fiel devedor do semitismo, do judaico-cristianismo, tanto, ou mais, do que é devedor do ramo helénico (que, é bom lembrar, também comporta Esparta, tão distante dos princípios humanistas como o diabo da Cruz). Ora, a civilização europeia, ocidental, proclamadora dos valores da liberdade (de propriedade, individual, de consciência, de expressão) é devedora do humanismo, logo, de Atenas e Jerusalém (e Roma, e Esparta, e Bizâncio, e Alexandria). São inúmeros os filósofos que o sublinham, como é o caso de Derrida e Lévinas (só para falar dos contemporâneos que me tocam o coração). Ora, a defesa do "direito a morrer" é uma clara violação desses princípios, curiosamente em nome dos quais é reivindicado. Aliás é triste (e mais uma vez incrível) que o seu contrário (o "direito a nascer") não seja uma reivindicação do mundo contemporâneo. Quer-se a morte, mas não a vida. E se isto, para um crente, apesar dos apesares, até acabe, por fim, por não fazer muita impressão, para os ateus e agnósticos é quase inacreditável que o desejem. Porque isso, para eles, é o niilismo total e absoluto. Ora, assim sendo, de onde resulta a defesa deste "direito" (e o "direito" de algo que não está nem nunca esteve no arbítrio da nossa vontade - do mesmo modo que ninguém nasce porque quer, o contrário deve também ser verdadeiro - é obra!)? O que os leva a defender algo que vai contra a matriz dos princípios que (dizem) partilhar? Eu julgo que a única explicação está num certo jacobinismo do pensamento moderno que vê, na Igreja Católica e em tudo o que ela defender, um alvo a abater. De tanto atacarem o Vaticano esqueceram-se que partilhavam com ele, nada mais, nada menos do que a civilização! E isto apesar de estarem sempre prontos para o apedrejar por causa dos erros do passado (Inquisições, intolerância religiosa, anti-judaísmo, etc.), mas nunca se fazerem ouvir para condenar os fanatismos não católicos (e eles são mais que muitos, não só entre as outras religiões como entre as não-religiões como o ateísmo), à excepção de Israel, sempre vilipendiado por tudo quanto faça ou deixe de fazer! Incrível! Mas sobre o caso que apaixona a Itália, pouco tenho a dizer. A decisão sobre o caso nunca é fácil, nunca é clara e distinta. Seria bom que o debate pudesse ter decorrido sem o frenesim e o puro espectáculo novelesco dos nossos tempos. Seria bom que o Governo não decidisse fazer uma lei apenas para impedir a morte de uma jovem ligada às máquinas há anos e anos, assim como seria bom que o caso dessa mesma rapariga não fizesse jurisprudência (e se deixarmos ouvir a palavra, ela diz tudo, juris_prudência) para outros casos que nunca serão semelhantes. Embora o velho provérbio judaico "quem salva uma vida salva o mundo inteiro!" seja admirável e deva ser um lema a seguir por qualquer civilização humanista, a questão será sempre o como se salva e o que vida, que tipo de vida, se salva. Eu por mim, continuo a preferir que neste tema (como sempre o defendi para o aborto) seja a Justiça a pesar, a contrapesar e a decidir. Mas uma Justiça que olhe para o caso por isso mesmo: um caso. E o julgue. Individualmente.

Os herdeiros de Kafka

Leio no Sol que um projecto de solidariedade acabou com uma multa do Ministério do Ambiente. Ao que parece trata-se do projecto que visa a troca de cápsulas e tampas (de garrafas, garrafões, etc.) que depois de entregues a uma empresa de reciclagem, rendiam cadeiras de rodas e material ortopédico a quem deles necessitasse na região de Santarém. Os responsáveis pela recolha, seguindo outros exemplos nacionais, conseguiram recolher cerca de 15 toneladas de material, o qual, por evidente dificuldade de armazenamento, acabaram por armazenar num terreno de uma amiga. Ora os nossos diligentes e competentíssimos serviços do Ministério do Ambiente, aplicaram intransigentemente a lei e aplicaram uma coima à proprietária por falta de uma licença para aqueles resíduos no solo. Se isto não viesse daquele Ministério que é incapaz de impedir/punir as descargas criminosas das suiniculturas no rio Lis e seus afluentes (bem como, também, na ribeira que aqui me atravessa a quinta), ou as inúmeras sucatas e lixeiras ilegais que por aí vão subsistindo, até se compreenderia. Agora, sendo deste ministério, e sendo os resíduos destinados à caridade (gosto mais desta palavra do que a tão proclamada e muito impossível solidariedade), é, lá está, mais uma vez, inacreditável! Resta-nos o consolo dos Evangelhos que dizem a estes pobres "infractores" que deles será o Reino dos Céus (ou, no mínimo, terão a eterna solidariedade de Kafka…)!

Os herdeiros de Robespierre

Gerou-se ultimamente um sururu medonho à volta do recente (re)acolhimento dos membros da Fraternidade São Pio X (o movimento fundado pelo Monsenhor Lefévre) no seio da Santa Madre Igreja. Ora, se isto viesse de católicos seria compreensível até certo ponto (embora contraditório com os princípios defendidos pela mesma Igreja), agora vindo dos sectores não católicos é de bradar aos céus! Se mal pergunte, o que é que o mundo em geral, o mundo lá fora, fora da Igreja, têm a ver com os assuntos internos da mesma Igreja? Ora, grande parte do sururu, deve-se às declarações tontas de um Bispo ligado à dita fraternidade acerca do Holocausto da 2ª Guerra Mundial (houve outros). Diz o Sr. que não tem a certeza de que o Holocausto tenha existido, que só sabe que as câmaras de gás eram usadas para banhos, etc., etc. Ou seja, o Sr. partilha da opinião do Presidente do Irão e da esmagadora maioria dos povos árabes e muçulmanos (também não são coincidentes como se pensa). Ora, que se saiba, nunca o Presidente Iraniano e outros que tais foram impedidos de permanecer nas Nações Unidas (que essas sim dizem respeito a todo o mundo), muito pelo contrário: podem até discursar livremente na Assembleia Geral da dita organização, emitir todo o tipo de disparates sobre Israel e os EUA e o grande Satã do Ocidente, sem que qualquer consequência daí advenha. E bem! A liberdade de expressão também passa por aí. Por todos os tontos e malucos e outros e afins poderem exprimir-se sem que daí advenham consequências para a sua vida. Porque raio dentro da Igreja Católica há-de ser diferente? Por ser Bispo? Então os outros são Presidentes de países, o que, politicamente, parece muito mais grave, não?

Depois deram a entender que anterior excomunhão proclamada pelo Papa João Paulo II (de resto uma excomunhão é, por princípio e por definição, alheia ao mundo laico e secularizado) seria motivada pelas suas posições anti-semitas (ou pelo menos, anti-holocausto, o que não é exactamente a mesma coisa). Nada mais falso! A sua excomunhão deveu-se à contestação feita pelo movimento às teses e resultados do Concílio do Vaticano II, rebelando-se contra as alterações que o mesmo produziu no seio da Igreja. Ou seja, deveu-se a questões internas da Igreja Católica (que, se bem me lembro, também foi atacada pela excomunhão do movimento, acusando o papado de intolerância e não aceitação da diferença de opinião). Trata-se pois do típico "morto por ter cão e morto por não ter". Porque Bento XVI enquanto Prefeito da Congregatio pro Doctrina Fidei era um perigoso fanático por aconselhar a excomunhão do movimento rebelde, agora que o acolhe de novo, não só dentro do espírito de perdão cristão, mas também no espírito de abertura às diferenças no seio da Igreja (com um piscar de olhos ao ecumenismo, claro está), é novamente um perigoso fanático se não (re)excomunhar o dito Bispo. Isto não faz qualquer sentido, até porque a excomunhão ou não de alguém no seio da Igreja parece-me assunto pouco ou nada interessante numa sociedade que se diz laica, ateia e separada (logo, etimologicamente, santa!).

Que uma das vozes que se fizeram ouvir nos gritos histéricos seja a da Chanceler Alemã, mais grave é, quando ela é líder de uma formação política que tem por base a doutrina social da Igreja, logo, com obrigação de conhecer melhor estes assuntos e não alinhar na histeria jacobina. Mais interessante é verificar que esta não é extensível aos inúmeros que negam a existência de holocausto na Rússia comunista e nos seus satélites, bem como na Palestina do Protectorado Britânico, e, de um modo geral, às perseguições mortais feitas na esmagadora maioria do mundo islâmico, onde ser judeu, cristão, ateu, agnóstico, laico, budista, hindu ou afim é meio caminho andado para a apostasia que condena à morte.

O Grande Satã

Que a dita opinião pública ocidental é tonta já se sabia. Que é esquerdalha está de ver. Que é marxisto-dependente é óbvio. Que é incoerente, é um pleonasmo com o ponto anterior. Que se tem tornado anti-americana e anti-israelita, é outra triste evidência. Que age e pensa na espuma das coisas é uma literalidade de ser "opinião pública". Que é controlada a partir de certos interesses políticos é que poderá não ser tão óbvio...

Todos nós fomos brindados com a histeria "Acabe-se com Guantánamo". Durante anos ouvimos as mesmas coisas, fomos brindados com a histérica Deputada Europeia Ana Gomes a gritar contra os pseudo-voos que pseudo-transportaram prisioneiros sem o pseudo-conhecimento dos governos europeus para a Base Militar Americana de Guantánamo em Cuba. A mesma foi-nos descrita como a pior de todas as prisões possíveis e imaginárias, um ultraje à dignidade do humano, com evidentes e claras imagens e vídeos a testemunhá-lo. A histeria subiu de tom auto-congratulatório quando o novo Presidente Americano anunciou o fecho, a prazo, desse "campo de concentração dos tempos contemporâneos" como também ouvi caracterizar o local (isto apesar de ser publicozinho que a maioria dos presos está a ser transferida para outros centros de detenção fora dos EUA e em sítios muito mais anónimos do que Cuba). Muito bem. Dando de barato tudo isto acriticamente, a Sábado publicada na última 5ª feira trás um artigo sobre outras 10 ("mais infames") cadeias e campos de trabalho pelo mundo fora. Turquia, Irão, Venezuela, Síria, Rússia, Israel, Tailândia, Coreia do Norte, Malawi, China são os contemplados, o que quer dizer que haverá outros "menos infames" que não estão ali referenciados. Ora, de todas, e em comparação, fica-se com a impressão de que Guantánamo é um campo de férias! Desde a La Sabaneta na Venezuela em que 25 000 almas se acumulam numa cadeia corrupta ao pior estilo Prision Break, até à da Síria descrita por um prisioneiro como "reino da morte e da loucura", há de tudo um pouco, nem faltando os típicos campos de concentração. Sendo assim, porque é que nunca ouvimos falar destes locais? Simples: nenhum deles é administrado pelos EUA. Pior: à excepção do campo de Israel (tão nebuloso que nem ninguém sabe se existe mesmo, parecendo lembrar mais um mito urbano do que outra coisa – até porque a existir exactamente assim já lá tinha o Deputado da Nação Miguel Portas a "solidarizar-se com mais umas vítimas da barbárie israelita", ou outro congénere mundial, que infelizmente há muitos) todas as outras são ou em países exóticos ao "alter-mundialismo" ou (a esmagadora maioria) em países amigos, e amigos porque anti-americanos (ou, como é o caso da Turquia, com uma opinião pública tendencialmente anti-americana, apesar das elites). Tão simples e claro como isto. Tão hipócrita e incongruente como isto. Em resumo: tão falso como isto! Os manifestantes contra Guantánamo fazem lembrar aquelas senhoras de grandes virtudes que vão à Missa todos os dias, que se confessam a toda a hora, para logo a seguir ir pecar na primeira esquina. Tal como a elas é difícil levar a sério esta gente!

Jurisprudência

Já hoje aqui escrevi sobre o cuidado que deveríamos ter ao escutar esta palavra. Infelizmente não pareço ter amigos na Justiça em Portugal, e poucos na (lá vem ela!) opinião pública. Se há coisa que os nossos agentes judiciais pouco conhecem é a prudência, esperando-se que a respeito do juris o mesmo não seja verdadeiro. Esperando-se, sublinho. Não, não vou dissertar sobre o caso Freeport, até porque pouco acredito que alguma migalha da verdade se venha a apurar. Espanta-me apenas a concepção, ao que parece vigente, de que um titular de alto cargo público da nação seja, por definição, mesmo quando as suspeitas sobre ele caem, sempre inocente. Já o ouvi em várias ocasiões, e agora novamente acerca do Primeiro-ministro. Mal alguma suspeita (verdadeira ou falsa não se sabe, aliás a questão passará exactamente por aí) surge, oiço logo dizer que não passa pela cabeça de ninguém que Fulano ou Beltrano seja culpado. Ao que parece, alicerçam este estranho procedimento em democracia (e se calhar estamos mais longe disso do que julgamos) na "presunção de inocência". Ora esta, o que garante é que alguém que é suspeito de uma ilegalidade não seja considerado culpado até trânsito em julgado de uma sentença condenatória. Não presume inocência tout cour a ninguém. Muito menos se esse alguém exerce cargo público de relevo (onde, inclusivamente, a exposição pública e a necessidade de dar o exemplo, o que poderão potenciar, é um escrutínio acima da média - não nos esqueçamos que à mulher de César, não basta sê-lo, é preciso parecê-lo!). Em Portugal, na democracia à portuguesa (que já nem me parece ser a vir, como no filosofema derridiano) oiço dizer que é impensável que (por ex.) o Presidente da República tenha cometido ou cometa um crime! Mais incrível é, quando nem na doutrina do absolutismo régio à francesa, isto acontecia!

Também o "ilustre" constitucionalista e pai da dita portuguesa (o que explica tanta coisa, tanta, tanta!), Vital Moreira, deveria usar e gozar de alguma juris_prudência quando produz disparates como este. É que eu até gosto de jurisprudência, mas nem tanto ao mar nem tanto à terra! Achar que as simples declarações de suspeitos de ilegalidades desmentem a existência das mesmas, é para além de uma aborto filosófico, um aborto jurídico (ou obedecendo à doutrina politicamente correcta, "uma interrupção voluntária do filosófico" e uma "interrupção voluntária do jurídico", respectivamente), ou pelo menos tentativa de desonestidade intelectual (porque nem chega a sê-lo, não consegue sê-lo).



P.S. Pois que hoje, Domingo, Alberto Gonçalves nos seus Dias Contados comenta tão exemplarmente estas mentes brilhantes!

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

As pombinhas da Catrina…

Porque, já se sabe, não resisto a estas coisas, aqui está uma bela e interessante lista (agora inventaram uma palavra de gosto duvidoso para estas coisas – listagem – que não se percebe muito bem o que acrescenta em relação a lista, enfim), rica de, digamos, cultura linguística ao seu nível máximo (bom, pelo menos ao seu nível mais íntimo!). Veja-se lá se uma língua tão criativa como esta, nas suas diferentes pronúncias e latitudes, não merecia uma melhor sorte do que o acordo ortográfico que os tontos lusitanos (meus – infelizes e infelizmente – compatriotas) assinaram (a propósito de "assinaram", como era bela a sua forma antiga "assignaram", vítima – mais uma – de outro acordo castrador e empobrecedor da língua. Como era bela esta palavra!) de cruz, até porque já pouco mais sabem do que fazer uma cruz?...

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Prefiro rosas, meu amor, à pátria

«Balanço patriótico:

Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúsio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, bêsta de nora, agùentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalépsia ambulante, não se lembrando nem donde vem,nem onde está, nem para onde vai; um povo, emfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional,--reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta;

Um clero _português_, desmoralizado e materialista, liberal e ateu, cujo vaticano é o ministério do reino, e cujos bispos e abades não são mais que a tradução em eclesiástico do fura-vidas que governa o distrito ou do fura-urnas que administra o concelho[1]; e, ao pé dêste clero indígena, um clero jesuítico, estrangeiro ou estrangeirado, exército de sombras, minando, enredando, absorvendo,--pelo púlpito, pela escola, pela oficina, pelo asilo, pelo convento e pelo confissionário,--fôrça superior, cosmopolita, invencível, adaptando-se com elasticidade inteligente a todos os meios e condições, desde a aldeola ínfima, onde berra pela bôca epiléptica do fradalhão milagreiro, até à rica sociedade _elegante_ da capital, onde o jesuìtismo é um dandismo de sacristia, um beatério chic, Virgem do tom, Jesus de high-life, prédicas untuosas (monólogos ao divino por Coquelins de fralda) e em certos dias, na igreja da moda, a bonita missa encantadora,--luz discreta, flores de luxo, paramentos raros, cadeiras cómodas, latim primoroso, e hóstia _glacée_, com pistache, da melhor confeitaria de Paris;

Uma burguesia, cívica e políticamente corrupta até à medula, não discriminando já o bem do mal, sem palavra, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados (?) na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provêm que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro;

Um exército que importa em 6.000 contos, não valendo 60 réis, como elemento de defesa e garantia autonómica;

Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; êste criado de quarto do moderador; e êste, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do país, e exercido ao acaso da herança, pelo primeiro que sai dum ventre,--como da roda duma lotaria;

A Justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara a ponto de fazer dela um saca-rôlhas;

Dois partidos monárquicos, sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, na hora do desastre, de sacrificar à monarquia ou meia libra ou uma gota de sangue, vivendo ambos do mesmo utilitarismo scéptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se amalgamando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguêm deu no parlamento,--de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar;

Um partido republicano, quási circunscrito a Lisboa, avolumando ou diminuindo segundo os erros da monarquia, hoje aparentemente forte e numeroso, àmanhã exaurido e letárgico,--água de poça inerte, transbordando se há chuva, tumultuando se há vento, furiosa um instante, imóvel em seguida, e evaporada logo, em lhe batendo dois dias a fio o sol ardente; um partido composto sobretudo de pequenos burgueses da capital, adstritos ao sedentarismo crónico do metro e da balança, gente de balcão, não de barricada, com um estado maior pacífico e desconexo de vélhos doutrinários, moços positivistas, românticos, jacobinos e declamadores, homens de boa-fé, alguns de valia mas nenhum _a valer_; um partido, emfim, de índole estreita, acanhadamente político-eleitoral, mais negativo que afirmativo, mais de demolição que de reconstrução, faltando-lhe um chefe de autoridade abrupta, uma dessas cabeças firmes e superiores, olhos para alumiar e bôca para mandar,--um dêsses homens predestinados, que são em crises históricas o ponto de intercepção de milhões de almas e vontades, acumuladores eléctricos da vitalidade duma raça, cérebros omnímodos, compreendendo tudo, adivinhando tudo,--livro de cifras, livro de arte, livro de história, simultaneamente humanos e patriotas, do globo e da rua, do tempo e do minuto, fôrças supremas, fôrças invencíveis, que levam um povo de abalada, como quem leva ao colo uma criança;

Instrução miserável, marinha mercante nula, indústria infantil, agricultura rudimentar;

Um regime económico baseado na inscrição e no Brasil, perda de gente e perda de capital, autofagia colectiva, organismo vivendo e morrendo do parasitismo de si próprio;

Liberdade absoluta, neutralizada por uma desigualdade revoltante,--o direito garantido virtualmente na lei, posto, de facto, à mercê dum compadrio de batoteiros, sendo vedado, ainda aos mais orgulhosos e mais fortes, abrir caminho nesta porcaria, sem recorrer à influência tirânica e degradante de qualquer dos bandos partidários;

Uma literatura iconoclasta,--meia dúzia de homens que, no verso e no romance, no panfleto e na história, haviam desmoronado a cambaleante scenografia azul e branca da burguesia de 52, opondo uma arte de sarcasmo, viril e humana, à frandulagem pelintra da literatura oficial, carimbada para a imortalidade do esquecimento com a cruz indelével da ordem mendicante de S. Tiago;

Uma geração nova das escolas, entusiasta, irreverente, revolucionária, destinada, porêm, como as anteriores, viva maré dum instante, a refluir anódina e apática ao charco das conveniências e dos interesses, dela restando apenas, isolados, meia dúzia de homens inflexos e direitos, indenes à podridão contagiosa pela vacina orgânica dum carácter moral excepcionalissíssimo;

E se a isto juntarmos um pessimismo canceroso e corrosivo, minando as almas, cristalizado já em fórmulas banais e populares,--_tão bons são uns como os outros, corja de pantomineiros, cambada de ladrões, tudo uma choldra, etc. etc._,--teremos em sintético esbôço a fisionomia da nacionalidade portuguesa no tempo da morte de D. Luís, cujo reinado de paz podre vem dia a dia supurando em gangrenamentos terciários.»

Guerra Junqueiro


Assim escrevia Guerra Junqueiro em A Pátria (1896) acerca do estado da nação ao tempo do Ultimatum. Lendo isto surpreendo-me com a estranha e inquietante actualidade da descrição (salvo as idiossincrasias do tempo), surpreendo-me com a estranha e inquietante estagnação, surpreendo-me com o estranho e inquietante diagnóstico. Mais a mais quando, olhando retrospectivamente, esses anos do início do reinado de El-Rei Dom Carlos I me parecem infinitamente mais excitantes, infinitamente superiores aos tempos em que vivemos. Quanto mais não seja porque a qualidade das elites – em comparação – era infinitamente superior. E isso entristece, isso amesquinha, isso inquieta. Ler este texto é perceber que volvidos mais de 100 anos os vícios são os mesmos, os pontos fracos permanecem, as podridões grassam nos mesmos lugares. Nada parece ter mudado! Tirando a evolução material decorrente da evolução conjuntural do mundo. Tirando isso mais nada!

E quase tudo me separa deste homem! Não só o tempo, que isso é só calendário. Mas as opiniões, as influências, as posições: foi este um dos grandes panfletários do republicanismo português, movimento que, se compreendo nas suas bases ideológicas e sociais, pouco prezo por ser contrário a tudo o que acredito e por o considerar directamente responsável por mais um passo no caminho lodoso da decadência. Foi também este homem que foi (malgré
tout o que escreveu sobre o Partido Republicano Português) "Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário da República Portuguesa junto da Confederação Helvética", que é como quem diz, embaixador da 1ª República, esse regime tão belo e tão justo que tanta saudade deixou no coração dos portugueses… (tanta, tanta, que se atiraram para os braços do Professor Doutor Salazar como frágeis donzelas em apuros…) Dedicou este homem a sua vida a apontar as falhas da nação à Coroa, quando eu acho precisamente o contrário: foi essa mesma Coroa que salvou a Nação, durante século e séculos, de se confrontar com a sua mediocridade.

Mas encontramo-nos aqui, nesta morada, neste chão, nesta khôra onde a pátria se esvai, onde a pátria se esquece. Onde a pátria se chora. Encontramo-nos pois no patriotismo, na sua amargura, na sua orfandade (bem, e também nos encontraremos sempre na defesa da bandeira azul e branca como a vera bandeira portuguesa!). No céptico pessimismo que me inspira. Ou pelo menos na indiferença que tudo isto me ameaça provocar. Vem-me à memória o amargo recitar de uns versos que cito abundantemente, de um poeta que tenho aprendido a gostar lentamente, mas que, aqui e agora me apetece ouvir e dizer silenciosamente:

Prefiro rosas, meu amor, à pátria,
E antes magnólias amo
Que a glória e a virtude.

Logo que a vida me não canse, deixo
Que a vida por mim passe
Logo que eu fique o mesmo.

Que importa àquele a quem já nada importa
Que um perca e outro vença,
Se a aurora raia sempre,

Se cada ano com a primavera
As folhas aparecem
E com o outono cessam?

E o resto, as outras coisas que os humanos
Acrescentam à vida,
Que me aumentam na alma?

Nada, salvo o desejo de indiferença
E a confiança mole
Na hora fugitiva.

Ricardo Reis

domingo, 1 de fevereiro de 2009

In Memoriam











D. Carlos I, Rei de Portugal

(1863-1908)

D. Luiz Filippe, Príncipe da Beira

(1887-1908)