América, América
Por contingências da cronologia, este artigo foi escrito antes de se conhecer o próximo inquilino da Casa Branca e publicado depois. Salvo surpresa, o inquilino será Barack Obama. Para o caso, não importa. E o caso, aqui, é o meu com a América, pouco susceptível de sofrer abalos por via das urnas.
Claro que a esquerda europeia e certa esquerda nacional andam empolgadas com a ascensão de Obama. Embora custe entender o que vai naquelas cabeças, talvez julguem que a vitória de Obama implica a capitulação dos EUA perante os seus inimigos. Ou a transformação do país num imenso Estado “social”, dedicado à humilhação dos ricos e, admita-se, dos operários e saloios sem consciência de classe que a esquerda abomina. No fundo, a esquerda aguarda que Obama acabe com uma determinada ideia da América. Ou, nos melhores sonhos, com a América.
Em época de obituários frenéticos do “neoliberalismo” e do “neoconservadorismo”, que ninguém define e todos condenam, não quero estragar o gozo de ninguém, mas temo que faltem caixões para tanto enterro e que o gozo não dure muito. Também face a Obama, a esquerda sofre do que, em bom português, se designa por wishful thinking, o hábito de tomar os desejos pela realidade.
Na América, que os marxistas pioneiros imaginaram cenário da vanguarda proletária, a realidade teima em desiludir a esquerda. Cada Presidente com que tentou simpatizar arruinou-lhe as fantasias em questão de semanas. Ou dias. Com diferenças de pormenor e discurso, as esperanças momentâneas da esquerda confiaram igualmente nas virtudes capitalistas e na pertinência militar. Não parece que Obama constitua excepção.
É claro que eu preferia McCain, menos pela área ideológica que na campanha ele fingiu representar do que pelas provas do seu passado, o qual, ao invés do passado do cintilante adversário, não se restringe a uns fogachos de activismo “cívico”. Por conveniência eleitoral, que suspeito errada, o moderado McCain abraçou o populismo à Goldwater de que nitidamente não comunga. Obama, por sua vez, viu-se forçado a disfarçar um currículo tangencial a figuras e causas “progressistas”. É interessante notar que ambos negaram boa parte do que realmente são. Dado que a América não é o que os europeus e alguns americanos enclausurados em universidades e redacções jornalísticas gostariam que fosse, é interessantíssimo notar que a negação empurrou ambos para as respectivas direitas.
Se tivesse ganho, acredito que McCain governaria de acordo com as suas convicções. Obama, cujas convicções são afinal vagas, volúveis e “estratégicas”, governará de acordo com as genéricas imposições do país “médio” e, por comparação com a Europa “média”, reaccionaríssimo. Em política externa e interna, as alterações serão principalmente discretas, ou no mínimo bastante comedidas para as expectativas da esquerda que nos é familiar. Ainda que José Saramago descobrisse em Obama o candidato da “revolução”, não se afigura provável que o senador do Illinois imponha nos EUA o tipo de revolucionária (e, passe a redundância, assassina) que o sr. Saramago sempre venerou. Nem que as suas medidas futuras encantem os sujeitos que leccionam workshops nos acampamentos de Verão do BE.
Em boa parte, o absurdo entusiasmo de estalinistas, leninistas, trotskistas e artistas afins em volta de Obama deriva de um cliché racista: o preto subversivo e avesso ao “sistema”. Sucede que, formado pelo “sistema” e eleito por milhões dos votantes em Bush, Obama encontra-se a milhas da subversão. Pelos repugnantes padrões do sr. Saramago, que a criatura exibe ou oculta consoante o contexto, o cristão e favorito do capital Obama é, na terminologia da seita, um óbvio “fascista”. Para cúmulo, com uma ironia que o sr. Saramago tem naturais dificuldades em detectar, celebrar o democrata é celebrar o vigor da única democracia capaz de escolher o Presidente dentro de uma minoria étnica.
Mudança é o slogan, não é? Mais do que a mudança após Obama, fundamental é entender que a América mudou durante 200 anos até chegar a Obama. Ao contrário do Ocidente que sobra, aliás, a mudança pertence à essência da conservadora América e, em larga medida, descreve esse lugar de fronteira que reflecte como nenhum outro os paradoxos da espécie e as suas maiores conquistas: progresso, conflito, superficialidade, comércio, comunidade, ambição, propriedade, tradição, ruptura, espectáculo, violência, iniciativa, racionalidade, optimismo, crise, religiosidade, ciência. E, sobretudo, liberdade.
Visto que, com ou sem Obama, a América não ameaça tornar-se uma Cuba ou sequer, se Deus e os homens que prezam tratamento de homens livres permitirem, uma paternal Finlândia, a América só não muda de modo que aqueles que a odeiam desejariam. De resto, a mudança na América não morreu com Bush nem nasceu com Obama. E o ódio à América não nasceu com Bush nem morrerá com Obama.
Alberto Gonçalves
Por contingências da cronologia, este artigo foi escrito antes de se conhecer o próximo inquilino da Casa Branca e publicado depois. Salvo surpresa, o inquilino será Barack Obama. Para o caso, não importa. E o caso, aqui, é o meu com a América, pouco susceptível de sofrer abalos por via das urnas.
Claro que a esquerda europeia e certa esquerda nacional andam empolgadas com a ascensão de Obama. Embora custe entender o que vai naquelas cabeças, talvez julguem que a vitória de Obama implica a capitulação dos EUA perante os seus inimigos. Ou a transformação do país num imenso Estado “social”, dedicado à humilhação dos ricos e, admita-se, dos operários e saloios sem consciência de classe que a esquerda abomina. No fundo, a esquerda aguarda que Obama acabe com uma determinada ideia da América. Ou, nos melhores sonhos, com a América.
Em época de obituários frenéticos do “neoliberalismo” e do “neoconservadorismo”, que ninguém define e todos condenam, não quero estragar o gozo de ninguém, mas temo que faltem caixões para tanto enterro e que o gozo não dure muito. Também face a Obama, a esquerda sofre do que, em bom português, se designa por wishful thinking, o hábito de tomar os desejos pela realidade.
Na América, que os marxistas pioneiros imaginaram cenário da vanguarda proletária, a realidade teima em desiludir a esquerda. Cada Presidente com que tentou simpatizar arruinou-lhe as fantasias em questão de semanas. Ou dias. Com diferenças de pormenor e discurso, as esperanças momentâneas da esquerda confiaram igualmente nas virtudes capitalistas e na pertinência militar. Não parece que Obama constitua excepção.
É claro que eu preferia McCain, menos pela área ideológica que na campanha ele fingiu representar do que pelas provas do seu passado, o qual, ao invés do passado do cintilante adversário, não se restringe a uns fogachos de activismo “cívico”. Por conveniência eleitoral, que suspeito errada, o moderado McCain abraçou o populismo à Goldwater de que nitidamente não comunga. Obama, por sua vez, viu-se forçado a disfarçar um currículo tangencial a figuras e causas “progressistas”. É interessante notar que ambos negaram boa parte do que realmente são. Dado que a América não é o que os europeus e alguns americanos enclausurados em universidades e redacções jornalísticas gostariam que fosse, é interessantíssimo notar que a negação empurrou ambos para as respectivas direitas.
Se tivesse ganho, acredito que McCain governaria de acordo com as suas convicções. Obama, cujas convicções são afinal vagas, volúveis e “estratégicas”, governará de acordo com as genéricas imposições do país “médio” e, por comparação com a Europa “média”, reaccionaríssimo. Em política externa e interna, as alterações serão principalmente discretas, ou no mínimo bastante comedidas para as expectativas da esquerda que nos é familiar. Ainda que José Saramago descobrisse em Obama o candidato da “revolução”, não se afigura provável que o senador do Illinois imponha nos EUA o tipo de revolucionária (e, passe a redundância, assassina) que o sr. Saramago sempre venerou. Nem que as suas medidas futuras encantem os sujeitos que leccionam workshops nos acampamentos de Verão do BE.
Em boa parte, o absurdo entusiasmo de estalinistas, leninistas, trotskistas e artistas afins em volta de Obama deriva de um cliché racista: o preto subversivo e avesso ao “sistema”. Sucede que, formado pelo “sistema” e eleito por milhões dos votantes em Bush, Obama encontra-se a milhas da subversão. Pelos repugnantes padrões do sr. Saramago, que a criatura exibe ou oculta consoante o contexto, o cristão e favorito do capital Obama é, na terminologia da seita, um óbvio “fascista”. Para cúmulo, com uma ironia que o sr. Saramago tem naturais dificuldades em detectar, celebrar o democrata é celebrar o vigor da única democracia capaz de escolher o Presidente dentro de uma minoria étnica.
Mudança é o slogan, não é? Mais do que a mudança após Obama, fundamental é entender que a América mudou durante 200 anos até chegar a Obama. Ao contrário do Ocidente que sobra, aliás, a mudança pertence à essência da conservadora América e, em larga medida, descreve esse lugar de fronteira que reflecte como nenhum outro os paradoxos da espécie e as suas maiores conquistas: progresso, conflito, superficialidade, comércio, comunidade, ambição, propriedade, tradição, ruptura, espectáculo, violência, iniciativa, racionalidade, optimismo, crise, religiosidade, ciência. E, sobretudo, liberdade.
Visto que, com ou sem Obama, a América não ameaça tornar-se uma Cuba ou sequer, se Deus e os homens que prezam tratamento de homens livres permitirem, uma paternal Finlândia, a América só não muda de modo que aqueles que a odeiam desejariam. De resto, a mudança na América não morreu com Bush nem nasceu com Obama. E o ódio à América não nasceu com Bush nem morrerá com Obama.
Alberto Gonçalves
* Há pessoas que têm o dom de dizer aquilo que, se tivéssemos engenho e arte, gostaríamos de dizer. O Alberto Gonçalves (na Sábado e nos Domingos do DN) é, por estes dias, o meu guru das crónicas. É um dos mais brilhantes da sua geração, e tal como alguns outros que devoro sempre que encontro (caso do Luciano Amaral ou do Rui Ramos), sabe pôr o dedo na ferida como poucos (e quase nenhum) o fazem neste país. Sempre com uma ironia refinada, uma elegância fascinante, e, sempre que lhe apetece e deve, uma crueza desconcertante. É daquelas pessoas que apenas sabem/conseguem gerar ódios ou amores avassaladores. Ou se ama ou se odeia. E eu sempre gostei de gente no limite...
Este é o texto por ele publicado na Sábado sobre as eleições americanas. Como complemento - se é que precisa! - deixo aqui o texto dos Dias Contados no DN do último Domingo. Sou fã, pois que sou!
1 comentário:
É incrível como não concordamos em quase nada e continuamos a gostar um do outro como se estivéssemos sempre em sintonia.
ODEIO o Alberto Gonçalves, sabias?
:D :D
(se não sabias, calculavas, aposto!) ;)
beijooooooooo!
Enviar um comentário