Para o Daniel. Por haver despertado a minha memória.
Herculana não se inquieta com a multidão. Gosta de festas, gosta de celebrações: afinal já viu algumas na sua vida. Anualmente gosta da algazarra da Festa do Senhor dos Passos onde muita gente acorre para assistir à tradicional Procissão (um arrepio percorre-a de cima a baixo: lembra-se do corpo do pai, morto num dia de procissão enquanto dormia a sesta. Benze-se.). E ainda há pouco mais de meia dúzia de anos lembra-se do ajuntamento que foi a visita d' El Rei D. Manuel II, coitadinho, a acompanhar a desgraça que foi aquele grande terramoto que até destruiu Salvaterra (arrepia-se novamente; lembra-se do medo que sentiu quando a terra tremeu, lembra-se do susto e das ruínas do velho Paço, incapazes de resistir a tão forte ataque) – Deus o acompanhe lá por longe, para onde ele foi ainda tão novo e tão ferido! E ela também não é uma saloiinha qualquer: já várias vezes saiu da sua Almeirim natal, já conhece algumas terras, praias e tudo, coisa que a maior parte dos seus conterrâneos não se pode gabar. Olha para Manoel e inquieta-se. Esta chuva que se abateu desde cedinho só pode fazer-lhe mal, já tão abalado está com aquelas chagas-do-demónio que tantas preocupações lhe têm dado. Não há meio daquilo passar e os médicos (parecendo não saber muito bem do que se trata) dizem que é preciso ter paciência; mas como pode ter paciência uma mulher nesta época desgraçada em que o marido é o sustento de uma casa?! Se ele lhe faltar, ai, valha-lhe Deus e não a castigue por, sequer, pensar nisso! Herculana aperta-se debaixo do guarda-chuva e lembra-se do seu Manoelzinho ("Manoel Alexandre", como o pai): desde cedo tem rezado pela sua saúde e felicidade, com os olhos rasos de água, aflita como Maria com o seu Filho – os tormentos de uma mãe nunca têm fim! Pensa no que estará o seu menino a fazer, mas depressa sossega sabendo-o o ai Jesus das tias, o único menino de uma família de mulheres (Deus guarde a alma do seu irmão Manoel, tão novo e já debaixo do chão e tanta água agora em cima dele, coitadinho!), das suas primas (tanta graça acha à relação que o seu Manoelzinho tem com as primitas, tão encantadores são todos e tão amigos – como irmãos, graças a Deus!).
Manoel não sabe as cogitações em que Herculana está. Também ele tem estado absorto, não sabe se é daquele tempo infernal se é da moléstia que o apoquenta. Inquieta-se ao pensar nisso, mas não gosta de partilhar com a mulher coisas que nem ele compreende muito bem. Tem medo de lhe faltar, a ela que tão dedicada lhe tem sido, e ao seu Manoelzinho, alegria daquela casa, onde todas as esperanças estão depositadas. O rapazito, apesar da tenra idade, é esperto e parece ir longe: queira Deus que assim seja! Parece-lhe que Herculana chora. Inquieta-se, mas não diz nada com medo de, com uma palavra, lhe despertar uma choradeira qualquer e as recriminações do costume que ele já conhece e não quer que sejam partilhadas com tantos estranhos. "Eia! Muita gente também cá caiu!", pensa, à medida que vai perscrutando o terreno em redor. Será que os relatos que ouviu sobre os petizes que falam com Nossa Senhora não são coisas de beatas e gente alucinada? Este pensamento inquieta-o ao pensar que tanto caminho fez para ali estar – mas a sua Herculana nunca lhe perdoaria não vir. Sabe que ela o faz sobretudo por ele. Tem sentido a preocupação no olhar e na voz dela sempre que ele está pior. E para desviar destes pensamentos começa a rezar!
Herculana continua a sua invocação de todos os santos que conhece! Aterroriza-a a ideia de ser mais uma viúva. Sabe o que são as viúvas desse tempo, sabe que a vida acaba ali e ela é demasiado viva, tem demasiado fogo para ficar morta por dentro. Pede à Senhora que Manoel deixe de beber. Ela sabe que, por muito que ele negue, as chagas ficam piores quando ele bebe mais e isso atormenta-a. Lembra-se da mãe e das noites em que o pai chegava a casa com o grão na asa. "Grão" é maneira de dizer que aquilo era homem que era um alqueire de uma vez! Lembra-se da pistola apontada à cabeça enquanto ele a obrigava - a ela e às irmãs - a ler a Bíblia. Lembra-se da mobília queimada e a outra perdida ou vendida aos companheiros da desgraça do jogo e do álcool. Lembra-se das fugas noturnas para casa dos padrinhos sempre que ele as queria matar a todas. Lembra-se de como ele, sóbrio, era "um homem perfeito". Lembra-se da recomendação da mãe – "filhas nunca casem com um homem com vícios!" – e tem medo que o seu Manoel vá por esse mau caminho. É interrompida nas suas inquietações pelo burburinho em redor…
(…)
A chuva parece ter finalmente cedido. Começam a surgir umas abertas e o sol quente de outono já mostra a sua graça aqui e ali, como se os raios fossem semeados à mão por um agricultor cósmico. Subitamente ouvem-se gritos, Herculana olha para o céu e parece-lhe que o sol está mais intenso. Arrepia-se e sente que tem de ajoelhar. Os joelhos em redor vão flectindo à medida que o sol baila no céu e parece despenhar-se sobre eles. Ouvem-se os gritos mas ela não tem tempo para isso pois olha para Manoel e não vê as malditas chagas que tanta apoquentação lhe têm dado. A alegria é tão grande que as lágrimas irrompem-lhes dos olhos e tudo o que consegue é pensar que o seu Manoelzinho terá pai para honrar! Em redor ouvem-se gritos de "- Milagre! É Milagre!" As lágrimas misturam-se com a alegria, a terra está seca como se não tivesse caído um pingo. Manoel, tolhido ainda pela surpresa, sabe que vai honrar aquele momento, aquela graça que Nossa Senhora lhe deu: não mais abusará da pinga! Sai daquela cova com nome de santa martirizada com uma vita nuova. E sabe que o deve à sua Herculana, afinal Nossa Senhora dá sempre ouvidos a uma mãe aflita!
*In memoriam da tia Herculana e do tio Manoel Alexandre (a grafia do seu nome ainda era esta), testemunhas anónimas dos acontecimentos da Cova de Iria de Maio de 1917. Ouvi a narração da cura milagrosa do tio da boca da minha tia Emília, pequena "primita do Manoelzinho", à data com 4 anos. Contava ela que essa era uma das primeiras lembranças que tinha da sua infância: o espanto causado pela cura testemunhada no regresso dos tios do lugar das aparições da Virgem. Anos depois a vida encarregou-se de a aproximar do lugar da aparição e aí (aqui) ouviu outras lembranças de outras testemunhas do sucedido (por aqui, e antes de 1917, era Nossa Senhora do Pranto de Dornes a rainha da devoção). Em todos a certeza inabalável: é milagre!
© O Manoelzinho com os pais (1925-1930)
4 comentários:
Ohh, emocionante. Obrigado pelo testemunho e pela forma tao bem contada.
Se nao te importares oportunamente farei referência a este teu post.
Obrigado, Luís. Foste a primeira pessoa que me trouxe um testemunho translaticio do momento e de pessoas anónimas, claro.
Um grande abraço
Ora essa Daniel!
Obrigado eu por me teres despertado a vontade de contar esta pequena história familiar. Contei-a como a imagino, a partir do relato que ouvi e do que apreendi da personalidade destes tios trisavós (que já não pude conhecer). Espero que lá onde estão eles gostem. E que lhes tenha feito justiça.
Abraço
Vim parar a este post pelo blogue Sair das Palavras do Daniel Silva (Lobinho).
Queria igualmente dar os parabéns ao autor pela forma como está escrito.
Ab
Bem vindo sejas, João!
Fico feliz e lisonjeado por teres gostado!
Muito, muito obrigado!
Grande abraço
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