segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Ah valentes!

Estou fascinado por esta colecção, Portuguesas Com História, de Anabela Natário. Só tendo ainda recebido o primeiro volume (referente ao período compreendido entre os séculos X a XIII), ando a contar os dias para que chegue o próximo. Escrito de maneira inteligente e acessível, intrigante e apaixonante, pelas suas páginas vão desfilando as mulheres que fizeram a história portuguesa, desde o alvor da portugalidade (com Mumadona Dias, fundadora de Guimarães) até à actualidade (embora para lá chegar ainda me faltem 5 volumes). É assim uma história do silêncio, ou melhor, do muito que a História tem silenciado; a saber: o papel decisivo das mulheres, da mulher, na formação e consolidação da nossa cultura e da nossa nação. Mas sem feminismos anacrónicos como é voga ver-se e usar-se por estas bravas terras. É, nesse sentido, também uma desconstrução do feminismo, pelo menos do feminismo de importação-de-trazer-por-casa, de origens francófonas e que muito deve a Beauvoir & Companhias. Uma pérola, pois!

Com um ritmo narrativo rápido e sedutor, Anabela Natário leva-nos a questionar os mitos fundadores de grande parte desse mesmo feminismo, na maior parte das vezes, ou fruto de simples importação sem atenção à idiossincrasia nacional (ou pelo menos peninsular, vá lá!), ou simplesmente fruto de análises histórico-sociais precipitadas, normalmente elitistas e urbanas, que tomando a nuvem por Juno, elaboram extrapolações sobre a condição feminina em Portugal ao longo dos tempos sem qualquer contacto com a realidade. Esse será, de resto, um problema comum nas ditas ciências sociais e humanas, ou, como prefiro chamar-lhes renunciando à obsessão cientista, no campo das humanidades e das artes – quase todas as teorias sociais, históricas, económicas, filosóficas, etc, foram importadas (sticto senso) sem qualquer atenção às (muitas) particularidades da realidade nacional, gerando um mundo de equívocos e lugares comuns que, colados a uma realidade diferente daquela para a qual foram elaborados, nunca se livram de causar uma certa estranheza. E incómodo. Ora, num país onde nunca terá havido "camponeses e operários" para justificar certas revoluções e afins, pelo menos camponeses e operários que encaixem nas restritas definições deles dadas na Inglaterra da Revolução Industrial, não admira que também no que concerne ao feminismo o mesmo tenha acontecido. Assim, neste livro (e presumo que nos volumes seguintes o mesmo aconteça) encontramos várias mulheres que, contra todas as nossas expectativas (minadas pelas noções que a cultura simplesmente estrangeirada nos deu), foram não só decisivas na evolução histórica portuguesa, como ibérica e até europeia. Estranha coisa, quando nos bancos das nossas escolas e universidades ainda é comum falar-se da simples submissão feminina ao poder masculino.


O que aqui encontramos é a desconstrução de um certo falocentrismo do feminismo, ou seja, a estranha obsessão (diria que freudiana) do feminismo se definir como oposição ao falo, ao mundo masculino, ao machismo. Encontramos neste primeiro volume uma sociedade onde ambos os sexos, homens e mulheres, são "escravos" das razões de Estado – relembre-se que estamos ao nível da história das elites e não da história do povo comum, essa, porventura, muito mais igualitária do que as elites o possam pensar -, por igual, sem se poder encontrar a subjugação de umas pelos outros. Muito pelo contrário: a vida das nossas damas e infantas revela que, para além do poder económico, muitas delas detiveram, usaram e deleitaram-se com o poder militar, político e cultural, jogando no grande tabuleiro da história europeia, enredando-se nos seus segredos, e fazendo, não poucas vezes, xeque-mate! E ao contrário do que se possa pensar, mesmo os mais avisados sobre isto, não foi apenas através do poder sensual, ou mais cruamente, através do sexo. Não! O poder que estas mulheres tiveram rivalizou com o dos homens, seus irmãos, seus pais, seus maridos, seus amantes, seus filhos. Detentoras de exércitos, de bens avultados, de liberdade de movimentos, nunca hesitaram em defender os seus interesses e os dos que protegiam e amavam (quem sabia que, quando lemos nos livros que determinada rainha ou infanta se recolheu a um convento, isso não significa que tenha professado, muito pelo contrário: na maioria das vezes essa é uma medida de autonomia - afastam-se da exposição pública ganhando liberdade de movimentos, para além de levarem uma corte pessoal - e de protecção, mantendo elas o controlo sobre todos os seus bens e rendas, e deles dispondo a seu bel-prazer, inclusive contra a vontade de alguns monarcas?).


Para mim que desde tenra idade considerava a Idade Média como uma época chata e aborrecida, onde apenas havia feudalismo e guerras religiosas, é interessante e surpreendente verificar que a Idade Média precedeu em grande medida, não o Renascimento, mas a Idade Contemporânea! Em certa medida arriscaria dizer que o que esta obra nos mostra é que a verdadeira Idade das Trevas veio sim, por certa via, curiosamente, com a Idade Moderna. Desde uniões de facto a conceitos muito muito muito alargados de família, passando pela promoção da música e da leitura, até ao constante confronto com o poder clerical, de tudo encontraremos nesses tempos recuados. Para quem foi descrita na história apenas como filha, esposa e mãe submissa, é de convir que o perfil de mulher independente e poderosa é, à partida, uma surpresa. Delicioso! Cá nos encontraremos para seguir esta saga!

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