Há uns dias atrás, no dia de Nossa Senhora da Conceição, a casa despertou com os telefones todos a tocarem em simultâneo; do outro lado da linha avisavam-me que a M. (uma velha amiga da família, daqueles amigos em que já os avós o eram) havia sido encontrada nua e confusa no patamar do andar onde vive, afirmando haver sido assaltada; mais me diziam que, uma vez chamada a Guarda, esta rapidamente havia constatado que nada se teria passado e que tudo aquilo não passaria de um delírio. Saída a Guarda, quem me chamava e me dizia ser uma vizinha, dizia-me que, uma vez que os bombeiros se recusavam a levar a M. para o hospital por ela recusar essa ajuda, não sabiam como proceder, não tinham contactos da família mais próxima (a M. nunca casou, nem teve irmãos), enfim: não faziam a mais pequena ideia do que fazer.
De pronto lhes disse que iríamos de imediato para lá, devendo apenas levar o tempo necessário para trocar as nossas mórficas vestes por algo mais apresentável. Quando chegámos, a M. não estava tão confusa como ma tinham pintado, reconhecia e falava com nexo com toda a gente, não fosse o permanecer nua, sentada na sanita, e insistir que tinha de ir tomar banho. Das 9.30 às 12.30 lá estivemos nós (bem, mais propriamente a minha madrinha e meia vila!) a convencer a M. a arranjar-se a fim de ir ao hospital fazer exames para saber o que tinha acontecido. A M. lá acedeu finalmente a fazê-lo, não sem antes tomar dois banhos (a M. é ligeiramente obsessivo-compulsiva, tomando 2 banhos por dia, e repetindo os mesmos rituais, mais ou menos à mesma hora, há mais de 50 anos) e vincar que nunca iria de ambulância. Ora nós, na qualidade de amigos mais antigos ali presentes (a minha madrinha conhece a M. desde a meninice), lá nos disponibilizámos para a acompanhar ao Hospital de Nossa Senhora da Graça de Tomar. Assim fizemos, e assim se passou o nosso feriado já que lá permanecemos até às 23.OO, altura em que nos comunicaram (a nós, à G. (a vizinha que havia encontrado a M.) e à G. (prima direita da M. ali presente depois da nossa chamada a meio da tarde) que a M. ficaria em observação naquela noite no S.O., só para acautelar (através de posteriores exames) que o pior já havia passado e que tudo aquilo apenas havia resultado de um pequeno AVC. No dia seguinte, ao fim da manhã, a M. regressou a casa acompanhada pela G. e desde então tem vindo a melhorar a olhos vistos.
Até aqui tudo normal, dentro do padrão de normalidade alargada que a M. convoca sempre à sua volta, devido a ser, aquilo que poderíamos denominar por uma figura. Ímpar e inconfundível! O que não acho de todo normal são três outras coisas.
Em primeiro lugar, a atitude dos bombeiros, ou seja, da (dita) protecção civil. Considerando que não é propriamente corriqueiro e habitual andarmos todos nus nos patamares das escadas dos prédios que habitamos enquanto descrevemos assaltos imaginários, não percebo como é que eles, tal como Pilatos, lavam as suas mãos e pronto. Quem quiser que se amanhe! (note-se que aqui há uns anos, numa situação muito similar cá em casa com a minha tia – pronto, sem o "assalto" e os comportamentos obsessivo-compulsivos – a resposta dos nossos soldados da paz, chamados pela minha madrinha, foi exactamente a mesma: se ela não fosse de livre espontânea vontade (pouco interessa que o uso das faculdades mentais que suportam a mesma não esteja ao seu melhor nível), não a podiam obrigar…) Ao que parece (e vendo-a como a comprei), apenas o Delegado de Saúde poderá "decretar" a coisa, o que, atente-se, é muito prático e exequível no caso da vítima em causa ter alguma patologia que necessite de cuidados médicos rápidos. Ou não!
Em segundo lugar, a atitude de uma outra vizinha. A jovem criatura, estando a sair de casa à hora do sucedido, e tendo de passar pela M. para chegar à porta do prédio, afirmou não ter nada que ver com aquilo. Logo saiu e lavou a sua consciência, o que me faz pensar em que raio de cornos de cabras (ou bicho menos simpático) esta gente foi enxertada, para ser capaz de passar por alguém naquela situação e não ter a mínima compaixão. Estranho e triste mundo este em que vivemos! É em horas destas que me lembro de uma frase da qual não gosto, mas que é merecida para bichos (sem ofensa para todos os bichos do mundo, muito mais éticos do que muito cabredo humano) destes: "o que é teu está guardado!"
Em terceiro lugar, a atitude da comunidade. Nomeadamente, a atitude em relação a nós. Isto é: ao que parece somos "altamente louvados" pelo nosso acto, "coisa benemérita", e coisa que "mais ninguém" faria… afinal, prescindimos do nosso feriado para acompanhar-mos alguém que não era nosso parente directo, passámos o dia sem comer decentemente, e ainda gastámos gasolina e telefone. Um luxo portanto!
Não sei se ria se chore. E aqui reside a minha maior perplexidade: o que haverá de tão estranho em socorrer e amparar alguém que precisa? Mas se não fossemos nós, ninguém faria o mesmo? Ou melhor? Caramba: mas se fosse outra pessoa, alguém que eu nunca tivesse visto na vida, marimbava-me e não fazia nada? Alguém achará mesmo isso? Mas que raio de sociedade é esta que estamos todos a construir em que se parece ter perdido a noção do essencial. É que, bem me lembro, há uns 20 anos atrás nada disto seria caso de espanto, muito pelo contrário: era normal e mais ou menos usual. Quem precisava recebia ajuda da família, dos amigos, dos vizinhos, etc. E não havia propriamente hossanas por causa disso. Mas isto, isto que vivemos, incomoda-me. Muito. E deixa-me, de certa maneira, piúrso. Incomoda-me ao ponto de nem sequer ser capaz de entender. Estes espantos com aquilo que considero normal, ou melhor, aquilo que considero o mínimo aceitável, são –parece-me – o sinal de algo podre no reino da Dinamarca. De algo muito podre no reino de Portugal. Chegados aqui, temo que não tenhamos regresso, e a ser assim, tempos de aço nos esperam. Atenção que não me esqueço do lado luminoso, dos milhões de pessoas capazes de tudo fazerem pelo outro, dos milhões capazes de compaixão, de humanidade. Não. Mas julgo que este tipo de pensamento (e não-actos), aliado à infantilização do discurso da sociedade civil (que se comprova com 5 minutos de qualquer jornal televisivo), à fragilidade das instituições, bem como à erosão dos tradicionais valores judaico-cristãos inspiradores do humanismo contemporâneo, ainda nos vai dar muitos amargos de boca. Oxalá assim não seja! Oxalá!
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