Eu sou um rapaz do campo. Na verdade, nasci numa cidade mas na altura certa. Quando Luanda tinha um parque natural que a fazia cair para a baía. Terra vermelha, íngreme, com rios de areia branca como a da praia, onde se podia rebolar sem ferir. Ter dez ou doze anos e ser dono desses terrenos (e eu era-o, mais os outros garotos de Luanda) é o que eu percebi mais tarde ser a felicidade. Com pés descalços ou com keds (o nome luandense para ténis), atacávamos (falo do fim dos anos 50) as Barrocas - era esse o nome da minha Terra do Nunca.
Havia muito bicho por lá, até cobras, mas nenhum com o prestígio do cuco.
Mais tarde li uma frase de quem não me lembro, comparando os cucos aos Papas, ou estes àqueles, por muito serem ouvidos e raramente vistos. Comparação mal feita porque nem eu nem rapaz da minha geração alguma vez vimos um cuco. Sim, ele tinha até nome científico, Centropus superciliosus loandae, os meus colegas chegados há pouco do mato davam-lhe nome em quimbundo, mukuku-atumba, e tudo. Sim, pelos meses de chuva, de Outubro a Março, nas Barrocas era um festival de "popop...", em duas notas, acabado num grasnido "coick...", que nos fazia rir, aos rapazes, porque adivinhávamos manobras entre os cucos, machos e fêmeas. Mas nunca os víamos.
Em adultos. Já os pintos cucos encontrávamo-los nos ninhos das viuvinhas, celestes e rouxinóis dos caniços e outros parvos. O vigarista e ladrão do cuco punha lá os ovos - não sei como, porque ignoro, com olhos de ver, o cuco adulto. Mas os donos do ninho, os que tiveram o trabalho do ninho, passavam também incubar o ovo do cuco. Diziam-me miúdos mais sábios, os do mato, que o cuco, ao pôr o seu ovo no ninho do outro, atirava ao chão um dos ovos do legítimo dono, para que o vigarizado não suspeitasse contando os seus ovos. E julgo ter visto, quando já havia um pinto cuco, a mortandade que era, sob o ninho, de ovos partidos. O que nos fazia suspeitar que o bebé cuco também empurrava os falsos irmãos. As Barrocas eram uma universidade, preparando-nos para a vida.
Só que eu confundo muito o que vivi com o que acabei por inventar - qualquer psicólogo, com esta frase, há-de diagnosticar-me, e bem, uma infância feliz. Ouvi cucos? Vi mesmo as consequências da acção vigarista, ladra e assassina dos cucos?... Esta semana, li que a BBC2 apresentou em Inglaterra um programa narrado por Sir David Attenborough, que já me apresentou dinossauros. Agora, ele fala e mostra cucos. Parece que sim, eles existem. Há imagens de um pobre rouxinol, exausto, a alimentar o paquiderme de um bebé cuco que o dobra em tamanho, alapado no ninho roubado. Eu sei, é violento. Mas o documentário passou-me as mãos pelas penas da minha infância e enterneceu-me.
Havia muito bicho por lá, até cobras, mas nenhum com o prestígio do cuco.
Mais tarde li uma frase de quem não me lembro, comparando os cucos aos Papas, ou estes àqueles, por muito serem ouvidos e raramente vistos. Comparação mal feita porque nem eu nem rapaz da minha geração alguma vez vimos um cuco. Sim, ele tinha até nome científico, Centropus superciliosus loandae, os meus colegas chegados há pouco do mato davam-lhe nome em quimbundo, mukuku-atumba, e tudo. Sim, pelos meses de chuva, de Outubro a Março, nas Barrocas era um festival de "popop...", em duas notas, acabado num grasnido "coick...", que nos fazia rir, aos rapazes, porque adivinhávamos manobras entre os cucos, machos e fêmeas. Mas nunca os víamos.
Em adultos. Já os pintos cucos encontrávamo-los nos ninhos das viuvinhas, celestes e rouxinóis dos caniços e outros parvos. O vigarista e ladrão do cuco punha lá os ovos - não sei como, porque ignoro, com olhos de ver, o cuco adulto. Mas os donos do ninho, os que tiveram o trabalho do ninho, passavam também incubar o ovo do cuco. Diziam-me miúdos mais sábios, os do mato, que o cuco, ao pôr o seu ovo no ninho do outro, atirava ao chão um dos ovos do legítimo dono, para que o vigarizado não suspeitasse contando os seus ovos. E julgo ter visto, quando já havia um pinto cuco, a mortandade que era, sob o ninho, de ovos partidos. O que nos fazia suspeitar que o bebé cuco também empurrava os falsos irmãos. As Barrocas eram uma universidade, preparando-nos para a vida.
Só que eu confundo muito o que vivi com o que acabei por inventar - qualquer psicólogo, com esta frase, há-de diagnosticar-me, e bem, uma infância feliz. Ouvi cucos? Vi mesmo as consequências da acção vigarista, ladra e assassina dos cucos?... Esta semana, li que a BBC2 apresentou em Inglaterra um programa narrado por Sir David Attenborough, que já me apresentou dinossauros. Agora, ele fala e mostra cucos. Parece que sim, eles existem. Há imagens de um pobre rouxinol, exausto, a alimentar o paquiderme de um bebé cuco que o dobra em tamanho, alapado no ninho roubado. Eu sei, é violento. Mas o documentário passou-me as mãos pelas penas da minha infância e enterneceu-me.
Ferreira Fernandes, DN
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