sexta-feira, 24 de abril de 2009

Entre os canaviais

Ia a caminho da cama, levando como companhia o jornal diário. De repente uma súbita vontade de um romance. Mas o quê da infinidade que vou comprando e que vou acumulando, qual formiga, para os tempos de Inverno? O que me apetecia? E de repente um nome, uma vontade quase indómita…



- A Morgadinha dos Cannaviaes, de Júlio Diniz (assim mesmo, com a bela grafia pré-republicana, ou não fosse o vetusto exemplar procedente da mocidade ainda novecentista da Tia Beatriz). É isto!


Comecei, um pouco a medo, com a desconfiança de uma anterior incursão falhada à Uma Família Inglesa. Subitamente, a surpresa (arrogante):



- O tipo até não escreve mal… tirando estes endereçamentos ao leitor, isto até é engraçado e muito bem escrito! E que magníficos diálogos!



Aos poucos, a narrativa a correr, as gargalhadas com as invectivas de Magdalena, "a morgadinha". (Em tempos de infância recordo vagamente uma série da RTP sobre este romance… no entanto tudo o que me ficou dessas imagens foi a imagem e o som de um relógio de parede em cena…) Aos poucos, a "doença" de Henrique de Sousellas a desaparecer por entre os canaviais. Aos poucos, toda aquela aldeia a ganhar vida, todas aquelas personagens a erguerem-se e a viverem à minha frente. As páginas a passarem, devagar de mais, demasiadamente devagar – se há coisa que me acontece sempre que pego num romance é uma avidez sem limite em lhe descobrir os segredos, em lhe avistar o desfecho, em lhe saborear o final. Angustio-me, arrelio-me, fico suspenso, conto as páginas que ainda faltam



O espanto! Aquele que eu tinha como um escritor de segunda do nosso novecentos, aquele que eu tinha como um "chato e aborrecido prosador", descobre-se página a página perante mim como um grande escritor, daqueles que conseguem escrever um livro como se pintassem a paisagem que têm perante si em traços impressionistas, em pinceladas fortes e decisivas, sem fraquejarem, sem arriscarem cair no naturalismo mais banal. Não! Em A Morgadinha dos Cannaviaes temos um grande retrato do Portugal oitocentista pré-queirosiano. Uma grande tela do tipo de sociedade, dos seus vícios, das suas manias, das suas virtudes, e principalmente, das suas tensões, das suas lutas, das suas indignações, da sua vida cívica. Em Júlio Diniz acabei por descobrir um grande escritor político, do político e da política à portuguesa. De novecentos e de agora. Em suma: um grande escritor! E quem conhecer a obra que me diga se as cenas das altercações populares (na igreja, e depois no cemitério) não são grandes páginas da literatura em português?

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