terça-feira, 7 de abril de 2009

Papiações

Estando esta noite no costumeiro zapping, deparei-me com um documentário na 2: a começar: Cochim – Uma terra distante, de Fernando Matos Silva. Eu, fascinado desde sempre pela Índia (Deus saberá de onde me vem este interesse, este gosto, este fascínio pela terra de destino das caravelas e das naus quinhentistas!) fiquei desde logo preso ao ecrã! E foi com deleite e profunda comoção que assisti, de uma ponta à outra, eu diria que até sem pestanejar… perfeitamente inebriado, como miúdo que vai ao circo pela primeira vez. Segundo o sítio da 2: este é



"Um documentário organizado à volta da divulgação da herança cultural indo-portuguesa, com imagens comentadas dos exemplos mais marcantes da arquitectura civil e religiosa e dos núcleos habitacionais marcados pela nossa construção tradicional.
A memória portuguesa patente na vida activa diária, comercial e artística de Cochim, hoje capital do estado de Kerala e das circunvizinhas Cranganor, Calecute, Travancore e Coulão.
A indiscutível e reconhecida influência das comunidades católicas indo-portuguesas e das suas antecessoras Nestorianas ou Santomenses em toda a região.
"




Mas tudo fica por dizer nesta descrição, mero rol do alinhamento das imagens. Tudo fica por dizer!...




Apontando a objectiva (principalmente) à comunidade católica (em parte luso-descendente) de Forte Cochim (cidade que fez parte do Vice-Reino Português da Índia entre 1503 e 1663), este documentário confronta-nos com o nosso passado, com o que fomos e o que queremos ser, com o que seremos, se quisermos. É um ensaio sobre uma maneira de ser português, e isso, parecendo pouco, é muito! A dita comunidade ostenta com orgulho, ainda hoje – volvidos que estão quase 350 anos da conquista holandesa -, os nomes e a cultura portuguesa. No seu cemitério resistem os nomes familiares, os nomes dos nossos antepassados e dos nossos descendentes (Sousa, Pereira, Martins, Lopes), com a ligeiríssima nuance de estarem grafados segundo a norma arcaica do século XVII (Anton, Souza, etc). E isto é um assombro! No seu falar escutamos também um português tão familiar como o seria, se o pudéssemos escutar com vida, o português dos Restauradores de 1640; mais: ainda hoje, nos momentos de celebração, nos momentos solenes, cantam em português, coisas que presumo, muitos já nem saberão o que querem inteiramente significar. Aliás, um dos entrevistados, um orgulhoso "português" de Cochim, considera-nos um dos povos mais corajosos da terra, um dos povos mais cultos, um dos povos mais empreendedores; comparando-nos com os holandeses e ingleses que se seguiram por aquelas paragens, ele fez um apontamento curioso que acho que diz tudo: dizia ele que esses outros povos europeus tinham dominado e governando aquelas terras ("they ruled"), mas que os portugueses, chegados em primeiro lugar, não procuraram impor-se, mas sim, integrar-se; interessados mais no comércio do que no domínio, deixaram o governo das populações entregue aos seus líderes tradicionais, dedicando-se apenas à sua actividade comercial e missionária. Como que resumindo a ideia, atalhava com uma frase quase estranha para nós hoje: "- They (os portugueses) were gentlemans! And a very brave people!"). De resto, o avô deste (agora, também) ancião tinha por hábito, após as orações em inglês, rezar o Rosário em português. E isto porquê? Porque o Inglês era uma língua protestante, logo, pouco idónea para um verdadeiro português católico orar!




Esta dimensão católica é, também, das mais impressionantes neste documentário. Não só pela arte sacra profundamente marcada pela influência portuguesa (a maior parte das igrejas datam do período português), mas sobretudo pelos costumes. Um dos quais, uma procissão do Senhor Morto (típica desta época pascal) arrepiou-me, não só no que de sentimento religioso transparecia, como pelo anacronismo evidente: aquela era uma Procissão do Senhor Morto igual às que percorriam as ruas da pátria europeia distante nos séculos XVII/XVIII. Mais um assombro! Assistir a uma procissão, com lanternins barrocos, com um Cristo de tamanho humano deitado no sepulcro, assistir ao velório posterior, assistir à maneira carinhosa como os Seus pés são beijados, assistir à renovação dos colares de flores que ornamentam a cabeça do Morto-Querido, é abrir uma janela para o nosso passado, para o que também fomos e deixámos de ser pelo caminho. E as orações e cânticos, tudo em português, numa papiação a fazer lembrar o papiar cristan de Malaca, ou a papiação di Macau (uma espécie de português arcaico cristalizado, um crioulo antigo, que ocorre em muitos dos lugares onde a presença portuguesa se fez sentir, com especial resistência nos territórios hoje pertencentes à União Indiana e à Indonésia) … Um assombro, um assombro, um assombro absoluto que me levou às lágrimas. Mas não num choro nostálgico: foi mais um choro pelo presente, pelo presente que tão pouco honra o nosso passado, que tão pouco nos lembra que isto também é Portugal. Mesmo que esteja lá longe, mesmo que esteja separado pelos séculos: ainda é, também é, Portugal. Ainda é, também é, ser português!





E depois as imensas questões que tudo isto levanta na identidade. A nossa e a deles. A nossa e a deles, dos outros, dos que rezam noutras línguas. A voz de Hannah Arendt a ecoar por dentro - "Was bleibt? Es bleibt die Muttersprache" – a ecoar por dentro como a dessa língua materna
que resiste, que resiste a tudo, que resiste à própria loucura, que resiste por dentro da poesia, que resiste por dentro na poesia, nos poemas que sabemos de cor. Tal como as orações. A forma como a nossa identidade consegue resistir a tudo isto, a toda esta loucura: algures no mundo, do outro lado do mundo, separados pelos mares e pelos séculos, outros, outros como nós (serão alguns de nós, também), são, sentem-se, vivem-se, vêem-se como portugueses. Como cristãos-católicos-portugueses. Apesar das eras e das políticas, apesar das perseguições e das mentiras, apesar do mundo… Cristãos. Católicos. Portugueses. Em Cochim. E com imenso orgulho e cada uma dessas identidades (serão mais do que uma?). Com um imenso orgulho em cantarem na língua dos seus antepassados, na língua dos fiéis: a Cristo, à religião, à pátria, à tradição, aos antepassados, ao sangue e à cultura. Com um imenso orgulho da sua identidade, da sua diferença em face dos outros: os holandeses, os ingleses, os protestantes, os indianos…




E agora é outro fantasma louco que me assola: Fernando Pessoa e o seu extraordinário aforismo que tão bem captou uma grande parte do ser português, do ir sendo português: "Minha patria é a lingua portuguesa". Ouçamo-lo assim mesmo, sem acordo, sem sossego, nesta que é já uma papiação doutro tempo, uma papiação a resistir nos corredores do tempo. Ouçamo-lo, e com os nossos de Cochim cantemos.


Não chóro por nada que a vida traga ou leve. Há porém paginas de prosa me teem feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noute em que, ainda creança, li pela primeira vez numa selecta, o passo celebre de Vieira sobre o Rei Salomão, "Fabricou Salomão um palacio..." E fui lendo, até ao fim, tremulo, confuso; depois rompi em lagrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquelle movimento hieratico da nossa clara lingua majestosa, aquelle exprimir das idéas nas palavras inevitaveis, correr de agua porque ha declive, aquelle assombro vocalico em que os sons são cores ideaes — tudo isso me toldou de instincto como uma grande emoção politica. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda chóro. Não é — não — a saudade da infancia, de que não tenho saudades: é a saudade da emoção d´aquelle momento, a magua de não poder já ler pela primeira vez aquella grande certeza symphonica.


Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.


Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-m´a do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.




©St. Sebastian Church, Thoppumpady (Kerala) a sua beleza e o seu sincretismo.


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