segunda-feira, 13 de abril de 2009

Identidades

Já aqui falei da profunda comoção que tive ao assistir ao documentário sobre a presença portuguesa, a sua herança e a sua permanência, em Cochim. Acontece que durante toda a semana passada a 2: transmitiu toda uma série de documentários (não sei se todos de Fernando Matos Silva, mas julgo que sim) sobre a presença portuguesa no Índico, de que o de Cochim foi apenas o primeiro. Seguiram-se: Ilha de Moçambique – A África dos Vice-Reis (que não vi); Goa, A Roma do Oriente (que também não vi); Malaca – A porta para o Oriente sem fim (que vi); e finalmente, já na Sexta-feira Santa dois episódios sobre Damão e Diu (o primeiro intitulado Diu é uma dádiva de Deus e o segundo, Damão, paraíso de paz e solidão) que vi, e embevecido. Também já aqui aflorei o fascínio que estas paragens exercem sobre mim e não vou voltar. Mas parece-me que uma nova reflexão identitária é necessária. Em todos os que vi (e presumo que, nos que não vi, mas dos quais já conheço alguma coisa, o mesmo se verifique) a presença portuguesa não é vista como uma "agressão", uma "conquista" imposta por um povo estrangeiro e usurpador, uma "nódoa" histórica. Não. Em todos os lados se repete uma certa nostalgia do ser português, do modo português de ver o mundo e as coisas, o qual parece ter deixado muita semente por aquelas terras do ultramar. Por todo o lado a língua portuguesa vai resistindo, não só às línguas locais, mas também ao avanço inexorável da grande língua-franca dos nossos dias, o inglês (ao que parece, substituindo o português que, entre o séculos XVI e XVIII, foi a grande língua de negócios e de transacção na Ásia). E isto é tanto mais curioso quanto, se exceptuarmos os territórios do Antigo Estado Português da Índia e de Moçambique (apenas perdidos na segunda metade do século XX, portanto, ainda agora), os outros territórios perderam o vínculo lusitano há mais de dois séculos! Coisa notável esta de ser português. De falar português. E, pelo que li aqui há tempo numa reportagem algures, também naquelas ilhas que hoje formam a Indonésia se encontram comunidades falantes de uma qualquer papiação de raiz portuguesa, lembrando-me até de uma onde anualmente se realiza uma procissão em honra de Nossa Senhora (já não me recordo de qual a invocação), procissão em barcos de pescadores (tal como por cá abundam, ou pelo Brasil), com "missais" manuscritos e herdados de geração em geração, nessa língua distante e tão familiar para nós… E, coisa não menos admirável, lembro-me que, nesse que é o maior país muçulmano do mundo, os islâmicos (esmagadoramente maioritários na região) protegem aquelas comunidades católicas ali encravadas pela acção e pela influência dos nossos antepassados. Em tempos de "alianças de civilizações" e afins (essa gente anda a pensar que está a inventar o mundo, é o que é!), que bom seria que estes exemplos de aliança avant-garde fossem estudados, protegidos e continuados! Que bom e que bonito!



E em todos estes casos, outra questão identitária salta à vista: a religião. Não é apenas a língua, a História, a tradição e a herança cultural (e genética, diga-se em abono da verdade, que isto de ser português também sempre foi um saltar de flor em flor…) tout cour que explicam esta resistência da identidade portuguesa. Isso passa, parece-me, em grande medida pelo catolicismo. Pela grande resistência, adaptação e permanência do catolicismo. Ou seja: uma certa maneira de ser português é, também e sempre, uma certa maneira de ser católico. E a isto não conseguem escapar os ateus, os agnósticos e os crentes de outras confissões (lamento aos mais empedernidos!). Por algum motivo do qual desconheço a forma exacta (mas que talvez passe pela profunda e íntima ligação entre o nascimento de Portugal e a Igreja Católica… de resto, esotericamente, Fernando Pessoa já reflectiu sobre essa íntima relação), ser português é também ser católico. Aqueles nossos de Malaca, de Cochim, de Goa, de Damão, de Diu, de Macau, de Moçambique, são-no também e em grande medida devido a esse extraordinário fenómeno (ontologicamente falando) de ser católico. Uma história e uma teoria sobre isso é necessária, porque parece-me por demais evidente. Poderíamos supor que isso se devesse à resistência ao invasor protestante (holandês e inglês); mas isso não explica tudo. E não explica, sobretudo, porque é que gente que nunca conheceu Portugal, que nunca viveu sob administração portuguesa, que é natural do oriente, que é cidadã de países independentes, se sente tão portuguesa. Ainda tão portuguesa (aliás, em Malaca o governo trata "os portugueses" como um grupo étnico à parte). E porquê "tão portuguesa" e não "tão inglesa" ou "tão holandesa" (afinal, ambos permaneceram por essas paragens por muito mais tempo do que nós)? Ou, ainda mais prosaicamente, tão simplesmente "indiana", "malaia", "indonésia"?








Vem isto chocar com a mitologia da colonização (e da descolonização) em que fomos (des)educados. Todas as categorias do "explorador" e do "explorado", decalcadas da cartilha de cordel marxista (e da sua visão infantil do mundo), ficam secas e mudas para explicar esta situação: como se compreende que o "explorado", a "vítima", tenha saudades, sinta a falta do "opressor", do "explorador", do "colonizador"?! Eu lembro-me sempre de, aqui há uns anos, em Coimbra, haver conhecido uma rapariga timorense que, ao abrigo da cooperação, lá estudava medicina; um dia, sentados a cavaquear no café perguntei-lhe qual a opinião/visão que ela timorense (e eles timorenses) tinha da nossa "exemplar" descolonização (se for como exemplo de "tudo o que nunca se deve sequer pensar fazer com uma qualquer descolonização"). A resposta deixou-me abismado, não porque algum dia tenha manjado essas mitologias (Deus livrou-me desse fardo!), mas porque estava à espera de alguma hesitação, de alguma espécie de silêncio meditativo. Não. Ela disparou-me um simples: -"Portugal foi muito estúpido! Podíamos estar todos unidos e mais ricos se não nos tivessem abandonado.". E eu, embaraçado com a prontidão, só consegui pedir-lhe desculpa pela parte de sofrimento que lhe infligi enquanto português (e como tal "herdeiro") dos criminosos e cobardes que abanaram os antepassados dela à mercê da bárbara invasão estrangeira. É pouco, eu sei, mas nada mais me ocorreu...




Muito temos, pois, para meditar, para pensar e para repensar. Volto a dizer que 35 anos – uma geração madura – me parece tempo mais do que suficiente para um olhar frio sobre os acontecimentos de 74/75. E para um olhar frio e distante sobre o ciclo Imperial. Muitos fios haverá para tecer, e muitos outros (tantos, tantos, tantos!) para desfiar. Eu por mim cá continuarei o esforço de conhecer o grande legado lusitano no mundo. Legado esse que não nos deve envergonhar em nada: muito pelo contrário! Estou certo que a História vai saber olhar, entender e reconhecer a colonização à portuguesa como algo muito diferente da restante colonização (até mesmo absolutamente diferente da espanhola). De resto, pelo menos desde a Conferência de Berlim de 1884-1885 que isso nos está sendo devido!




Que estes trabalhos de Hércules à portuguesa (necessários, sempre necessários!) nunca nos afastem do futuro. E do futuro de Portugal e da portugalidade no mundo. Que passará pela língua (um dos nossos maiores legados ao mundo), mas não só. Se há coisa lamentada pelos vários participantes nos vários documentários a que assisti é, precisamente, o abandono (mais um!) a que são votados pela Nação Portuguesa. Abandono esse que passa, não só pela imperiosa necessidade de proteger, estudar e recuperar o imenso património arquitectónico e artístico português no mundo (só em Goa são 365 igrejas!) – sacro, militar e civil; mas igualmente pela ausência gravosa de uma política cultural ultramarina onde se enquadre uma igualmente necessária política da língua, que, como é óbvio, em nada passa por acordos arranjados à pressa para agradar a troianos… Uma política da língua que inclua a sua imensa e fabulosa diversidade, que a projecte no mundo, que a dinamize onde ela resiste com tamanhas dificuldades! (se em Malaca e Cochim até se poderá compreender a ausência da presença portuguesa, nos antigos territórios do Estado Português da
Índia é todo o trabalho e o esforço de mais de 450 anos que é posto em causa!) Se soubermos ser os herdeiros à altura do que o Reino de Portugal nos exige, outro galo cantará em Portugal, e, pela força do exemplo e dos nossos valores universalmente partilháveis, também todo o mundo o ouvirá. E os nossos irmãos de Cochim, com o seus ranchos "castiçamente" vestidos à minhota, bem que gostarão de escutar o canto do rei de Barcelos…!








P.S. Se um dos nossos maiores legados para a cultura mundial é precisamente a arte, a arte do mobiliário é das que mais alto conseguimos erguer. Não é de hoje que fabricamos bons, belos e úteis móveis! Fazemo-lo há séculos com mestria reconhecida internacionalmente. Quanto a mim, um dos expoentes da nossa arte de mobiliário e decoração está no estilo indo-português: o seu sincretismo elegante, culto e refinado fascina-me e deixa-me sempre embevecido pela obra que "um milhão e meio" de almas conseguiu erguer no mundo. Aqui vos deixo um magnífico e sumptuoso contador (se há coisa que adoro são contadores, com as suas gavetinhas e os seus segredos) indo-português que podeis apreciar no Museu Santos Rocha, na Figueira da Foz.

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