domingo, 5 de abril de 2009

Cliché

Dois programas de televisão provocaram-me hoje uma incrível sensação de fastio. Foram, ambos, mais do mesmo, e mais do mesmo, mesmo! Falo do Conta-me Como Foi na RTP1 e do Câmara Clara na 2:.

O Conta-me Como Foi fez um episódio especial no qual a família Lopes visitou a aldeia onde têm as suas raízes. Como sempre nesta série, gosto da recriação de um tempo no qual não vivi, mas do qual conheci ainda as franjas. Gosto da recriação dos objectos, das roupas (hoje até as roupas dos "aldeões" falharam redondamente), dos pequenos nadas do quotidiano, dos costumes e dos hábitos das gerações que nos precederam. Como sempre (infelizmente, diga-se de passagem), acho a abordagem política tonta, desfasada, tendenciosa e infiel à realidade. Aliás, quem vir a série dificilmente compreende como se aguentou a mais longa ditadura do ocidente europeu durante tanto tempo, quando (supostamente) não havia praticamente ninguém a defendê-la. Com a (des)honrosa excepção da atroz figura do "Engenheiro" que julgo pretender caracterizar uma classe média-alta apoiante do regime. Fica-se pela pretensão: a tonteira com que a personagem foi pensada (e todo o mundo em que se move) tem mais semelhanças com a classe média aburguesada e "pato-bravia" que tomou conta do país nos tempos imediatos à queda do regime (e que muito prosperou com essa mesma queda), do que com as classes médias antigas-apoiantes do Estado Novo ("antigas-apoiantes" porque em Portugal, todos são pela"situação" num dia, e no seguinte já todos são pela "revolução", coisa que se repete e verifica em todas as ditas "revoluções", pelo menos desde 1910, embora desconfie que o mal e a cobardia já vêm de longe!). Alicerçada na visão marxista do mundo (a suposta luta de classes como motor do mundo, os patrões sempre vistos como bichos piores do que o Adamastor, a figura do assalariado-vítima, e outros dislates e parvoíces que tais – e o que impressiona é como isso fez história no mundo inteiro! E milhões de vítimas.) a série falha naquilo que poderia ser uma discussão (mais de "serviço público" do que o aborrecido-mas-alguém-ainda-vê-aquilo-? Prós e Contras) interessante, educativa, pedagógica e reconciliadora. Reconciliadora com a nossa história, volvidos que estão quase 35 anos do 25 de Abril de 1974. Uma geração, portanto. Nada disso! Perdendo-se por esse lado, sobra a recriação folclórica dos usos e costumes, da moda e da decoração, dos anúncios da televisão (embora quem veja aquilo não tenha bem noção que a Televisão era apenas "um canal e meio", sem programação contínua), da lembrança de alguns acontecimentos marcantes da época, e dalguma diferença nos modos de educação. É pouco, mas é o que temos. (não sei se o problema estará tão puramente no facto da versão portuguesa ser adaptada da versão espanhola e por lá estar na moda a revisão histórica, se o problema é mesmo de ser escrita por gente que não faz a menor ideia de como as coisas se passaram).

Ora foi aí, exactamente, que o episódio de hoje me deixou de boca aberta. A falha foi por demais evidente. Das roupas à aldeia totalmente despovoada a que assistimos (coisa que em 1970 é totalmente impossível, apesar do surto emigratório dos anos 60. Aliás, nem em 1980 as coisas eram assim!), foi um descalabro de disparates. E eu, que costumo dizer que um dos piores males deste país é não ter elites regionais dignas desse nome, restando apenas as elites do eixo Liceu Passos Manuel- Liceu Camões cujo conhecimento do país é nulo, vi a minha anátema retratada com todas as cores no ecrã do televisor. Quem escreveu aquilo não faz ideia 1) do que é uma aldeia portuguesa, 2) do que é uma aldeia portuguesa em 1970, 3) do que é uma aldeia portuguesa em 1970 em Trás-os-Montes! E, julgando eu que a minha incredulidade se devia ao meu já famoso mau feitio, eis que a minha madrinha entra na sala, olha para aquilo e diz-me: "- Mas eles julgam que toda a gente se vestia de preto nas aldeias?" E eu, ainda tolhido pela incredulidade só lhe pude responder: "- Pois, parece que sim…"

Ora vamos lá a pôr um bocadinho de siso nas coisas. A) As aldeias portuguesas ainda não estavam, em 1970, como estão hoje: eram habitadas, não só pelos velhos como (ainda) por muita gente nova; ora isto é facilmente perceptível se nos lembrarmos da percentagem da população cuja actividade principal ainda era a agricultura e extrapolarmos os resultados para a população envolvida, ou seja, até matematicamente é verificável! B) Os aldeões não andavam todos vestidos de preto: isso era habitualíssimo (e mal visto se assim não fosse) nas viúvas, naqueles que estivessem em período de luto, ou nas mulheres solteiras mais beatas, se bem que até estas usavam outras cores, discretas, mas outras cores. C) As pessoas não saíam (não saem) da missa e desaparecem da igreja; não: o pós-missa é um ritual tão ou mais sacramentado do que a Eucaristia ela mesma! E para isso não é preciso ir a 1970: basta ver hoje como é. D) As crianças das aldeias não andavam assim vestidas (tomara elas!), nem sequer quando eu andei na escola, numa aldeia, no final da década de 80! É triste, mas é verdade! Não vi nenhuma em actividades agrícolas (as brincadeiras eram, normalmente, nos intervalos das mesmas).E) Duvido que os aldeões precisassem de conselhos amorosos do "D. Juan Carlitos"… Essa visão do mundo rural repleto de atrasadinhos e "atadinhos-quase-bestas" é um insulto e é não conhecerem a cepa rural portuguesa. De todo! E se fosse ao contrário não me espantaria… F) A visão "nova-rica" de uma rapariga citadina que não sabe lavar à mão só pode ser, em 1970, uma liberdade poética e ficcional. À mão lavava-se (lava-se) em qualquer lugar, fosse no rio, num lavadouro público (como foi o caso na série), num tanque numa qualquer "marquise" de subúrbio (que os "Lopes" até têm e tudo como vimos em episódios passados), ou num alguidar na banheira; achar que não é, isso sim, não fazer ideia do que seja… mas entretanto correram 40 anos de água por debaixo das pontes. G) Não havia necessidade de transformar a alusão às "disputas da água" (é verdade, famosas e usuais ao tempo, e pelo que oiço dizer, ainda hoje) em mais um episódio maniqueísta da luta de classes: as ditas aconteciam transversalmente e, corrijam-me se estiver errado, aconteciam mais entre as classes (ditas) populares, e entre familiares, por um simples motivo: as propriedades serem mais pequenas, mais concentradas e o recurso a poços ser, por isso mesmo, mais escasso. H) Quer-me parecer (e quem conhecer melhor as tradições nortenhas poderá esclarecer isso) que nos casos em que se "aguardava" uma morte, os vizinhos e familiares não se juntavam (simplesmente) em casa do quase-defunto: juntavam-se em oração (tenho ideia que o Rosário seria o mais comum), pedindo ao Céu para que a alma do ente querido entrasse com todas as honras no Reino dos Céus. E após o último suspiro as rezas continuavam durante o velório, havendo "carpideiras" e tudo! (por cá, em 1986 ainda havia o recurso a essas "profissionais da dor").

Nota positiva apenas para um diálogo tido junto ao lavadouro: o diálogo sobre a vida rural/vida na cidade. O resto: pura ficção e mais do mesmo!



Posto isto, transitei para a 2: para o Câmara Clara onde se debatia a Guerra Civil de Espanha 1936-1939. Ou melhor: debater é um eufemismo que utilizo para (mais) um programa de propaganda. Para ter havido ali algum debate teria de ter havido – pelo menos – duas posições antagónicas sobre o assunto, coisa que não se verificou. Aliás, esta conversa sobre a Guerra Civil de Espanha é elucidativa para trazer aos olhos e aos ouvidos uma coisa que me parece extraordinária: esta é das raras guerras cuja história não é escrita pelos vencedores, mas pelos vencidos. E isso, sendo raríssimo na história mundial, é assinalável. O resto foi mais do mesmo. Com uma nuance: um dos intervenientes defendeu a tese de que "até houve algumas atrocidades do lado republicano" (coisa também assinalável por ser comummente omitida e convenientemente "esquecida"), para logo atalhar que essas barbaridades e esses crimes foram perpetrados pelos revolucionários mais esquerdistas. Ou seja: ao que parece o lado republicano é todo impoluto e virginal, à excepção de uma horda de gente que, apesar de constituir uma boa parte desse campo, "não era desse campo". Eram, se quisermos, uma terceira parte envolvida na guerra, a qual, ao que parece, se travou entre Anjinhos (os Republicanos bons), Maus (os Republicanos-que-não-eram-bem-Republicanos-porque-eram-maus) e Demónios (o Bloco Nacionalista). É obra!

E eu diria que é não perceber, ou não querer perceber o que é uma guerra, o que acontece durante uma guerra, e pior, o que é e o que acontece durante uma guerra civil (como é o caso da Espanhola). Pior: o que é e o que acontece durante uma guerra civil que é um ensaio para outra(s) transnacionais por vir. Mais ainda: é não perceber, ainda hoje, o que levou a Espanha à insurreição generalizada e à guerra civil. E isso, não podendo ser burrice colectiva, só pode ser uma coisa: má vontade, falta de honestidade intelectual e, mais prosaicamente, sacanice! A Espanha viveu uma guerra civil feroz, sangrenta e cruel (como todas, de resto). Nessa guerra cometeram-se atrocidades (como em todas) e crimes variados por ambos os lados da contenda (como em todas). Alguns desses crimes, sendo explicáveis, não são justificáveis em tempos de guerra (como em todas). Esses crimes deixaram marcas profundas (como em todas). Há que fazer a história para memória e aprendizagem futura (como em todas). Essa guerra teve intervenção estrangeira (numas mais do que noutras, mas, como em todas). A partir daqui, investiguem-se, estudem-se, discutam-se e pensem-se as singularidades desta guerra. Pense-se porque é que o lado, supostamente mais forte, perdeu. Pense-se porque é que uma insurreição no ultramar foi seguida por quase todo o território da metrópole. Pense-se porque é que a Monarquia havia caído ainda não meia dúzia de anos antes. Pense-se qual era o ambiente vivido na sociedade. Pense-se. Pense-se. Pense-se. E tenho a certeza que a conversa será ligeiramente diferente… Que é como quem diz, menos do mesmo!



© Imagem aqui.

2 comentários:

Daniel C.da Silva disse...

Se o provedor dos teleespectadores sabe que tens um blogue, demite-se :)

Muito bem. És muitíssimo atento e quando aprecias, apontas falhas como quem quer ver a coisa como deve ser precisamente porque aprecia. Eu também gosto do "Conta-ne como Foi" apesar de nao ver sempre e de nao o ter vivido também...

Grande abraço

Luís P. disse...

Ui Daniel, ainda não viste nada! ;)
Quando aqui o "olho clínico" entra em acção, sou pior do que a "Titi" da "Relíquia" a dizer mal dos hereges!... :D

Abraço