Por cá nunca esta foi a madrugada esperada, inteira e limpa. Por cá nunca esta foi a manhã da liberdade. Foi-o sim, é bom recordá-lo, a manhã da tirania. A manhã do medo. A manhã do terror. Uma simples manhã, levemente apercebida, sem real noção do que se passava. Muito menos do que a tarde reservava. Era ainda a alvorada, na primeira estação do tempo. Era ainda a estação das cantigas e das palavras permitidas. O céu só começava a escurecer, mas era, julgava-se, mais uma trovoada. Cedo passaria, como de resto a memória dizia que todas as anteriores haviam passado. E haviam sido muitas!
Depois as horas passaram e o medo chegou. Um medo nunca antes visto, nunca antes apercebido - sequer como possível - instalou-se frio e triste. Chegou a tirania mais tirana do que a anterior. Chegaram os insultos, as ameaças, os planos de fuga e os planos de resistência. À medida que os carrascos afiavam as facas, construíam as forcas, elaboravam as listas de alvos, por cá serravam-se as portas, blindavam-se os corações, entreabriam-se levemente as janelas. A sombra da tempestade, negra e carregada, aproximava-se de mansinho; umas vezes parecia cavalgar montanhas; outras ficava a rondar, à distância, como um predador que apenas espera o momento de avançar.
À medida que o dia cresceu, cresceu o medo e o terror. Limparam-se as armas, cavaram-se as trincheiras, recolheram-se as flores, limparam-se as mocas. Tudo com um sorriso, tudo com a fria dissimulação da aparente normalidade. Os nossos choravam, corriam aflitos e avisavam da retirada. As notícias que chegavam eram terríveis: por toda a parte lágrimas e grades; por toda a parte escravidão e miséria. As trevas vieram e pressentiu-se o cheiro a enxofre e pólvora. O combate estava prestes a começar…
Hoje, depois de um outro 25 mais inteiro e limpo, urge lembrar a memória dos deserdados. Dos dois grandes traídos deste 25: Marcello José das Neves Alves Caetano. Fernando José Salgueiro Maia. Estes dois homens cruzaram-se há 35 anos atrás num dos dias mais inesquecíveis para os dois. Um estava de saída. O outro estava de chegada. Ambos cumpriram o seu papel com honra e dignidade. Ambos lamentaram o seu destino. É engraçado como duas pessoas se podem cruzar uma única vez na vida e, apesar dessa brevidade, ficarem unidas para sempre.
Marcello Caetano chegou quando tinha de chegar ao lugar para o qual se tinha preparado toda uma vida. Académico brilhante e reconhecido, emprestou a sua inteligência ao serviço das ideias em que acreditava e que procurou defender sempre. Foi um homem impoluto e honrado, e um grande professor, "o professor mais completo" (no dizer de Marcelo Rebelo de Sousa). Defendia uma solução transitória para a questão do Ultramar que passava por um período federalista que preparasse para uma descolonização à brasileira. Não conseguiu impor a sua visão em tempo útil. Foi traído por aqueles em quem mais depositava esperanças. Cumpriu o papel que a história lhe tinha reservado até ao fim, até à rendição, com uma única preocupação: que o poder não caísse na rua e que o Ultramar não fosse abandonado à sua sorte. Perdeu e nenhuma das suas preocupações foram atendidas! (Quero aqui contar um episódio que julgo que demonstra bem o carácter deste homem: aquando da Crise Académica de 62, Caetano era professor do curso de Direito na FDUL. Era professor de um primo meu. Um dia, em plena greve estudantil, chega à aula e vê o meu primo à espera – era um estudante bolseiro, com grande dificuldade dos pais e como tal não se podia dar aos luxos dos seus colegas esquerdo-burgueses. Marcello Caetano olhou para ele e perguntou-lhe o que fazia ele ali; ele respondeu-lhe que estava à espera da aula, ao que o [então também Reitor] Professor retorquiu: "Vá-se embora e vá ter com os seus colegas. O seu lugar é lá. O meu aqui." Ou seja: tudo tem o seu lugar e é preciso saber cumpri-lo e honrá-lo até ao fim!]
Salgueiro Maia saiu da EPC de Santarém para acabar com "o estado a que isto chegou!". Soube comandar e fazer-se obedecer. Mais: soube fazer-se respeitar e honrar. Dirigiu as operações do golpe militar que depôs Caetano do Poder. Conseguiu-o quase sem derramamento de sangue (graças a si e às ordens de Caetano que, podendo resistir, não o fez, preservando até ao último momento o sangue português que jurou defender). Quando entrou no Quartel do Carmo, para exigir a rendição de Caetano, portou-se como um militar e como homem honrado! Cumpriu as suas promessas e o seu dever (fiel ao que defendia e ao que acreditava). Mais tarde, participou no outro
25. Depois recolheu-se ao seu lugar, recusando as honrarias e as recompensas do parte e reparte que os novos donos do Poder (muitos seus antigos camaradas) lhe propuseram. Foi o único herói dos vencedores, porque foi o único que se manteve impoluto (como o escândalo que a recente promoção de Otelo Saraiva de Carvalho – terrorista condenado e politicamente absolvido – comprova!) e fiel aos seus princípios. Dele, um camarada dizia há poucos dias: "(…) se soubesse ao que isto chegava, não tinha saído de Santarém".
© Marcello Caetano, Maluda, 1970.
© Salgueiro Maia, Henrique Tigo.
2 comentários:
Nunca li nada com tanto prazer. O primeiro texto está ABSOLUTAMENTE fantástico. Parabéns.
Abraço
Obrigado Luís! :)
Reflecte a "herança" do PREC cá por casa, uma herança bem diferente da oficial... enfim!
Grande abraço
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