Terror. qualidade do que é terrível; estado de pavor; pessoa ou coisa que amedronta, aterroriza; perigo, dificuldade extrema; objecto de espanto.
Terrorismo. modo de impor a vontade pelo uso sistemático do terror; emprego sistemático da violência para fins políticos, especialmente a prática de atentados e destruições por grupos cujo objectivo é a desorganização da sociedade existente e a tomada do poder; regime de violência instituído por um governo; atitude de intolerância e de intimidação adoptada pelos defensores de uma ideologia, sobretudo nos campos literário e artístico, em relação àqueles que não partilham das suas convicções.
In Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa
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et mourir à madrid le coeur brisé
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Ruy Belo
Há estados anormais que (infelizmente), por força da circunstância, se transformam em estados normais. É o caso do terrorismo e dos seus inefáveis e hediondos "atentados". Quem vive hoje em Bagdad, em Cabul ou em Israel vê-se obrigado a viver permanentemente com a ameaça terrorista sobre a cabeça. Como isso é possível, como se vive com isso, já é algo que me impressiona, que me faz espécie, mas que compreendo. Nós humanos, se temos característica útil, é sermos adaptáveis. Absolutamente adaptáveis. No instinto de preservação da espécie e da vida habituamo-nos a tudo. Mesmo que por tudo se entendam os adereços de moda que impliquem explosivos, infelizmente um hábito corrente por este mundo fora!
Os exemplos são mais que muitos. De Nova York a Bagdad, de Tóquio a Telavive, de Londres a Bombaim, o rosto do mal tem-nos habituado a conviver com o terror, a estar em sobressalto, a estar em perigo. A coberto de uma dita luta de civilizações, que ninguém define, que ninguém explicita, praticam-se os maiores horrores a milhares de vítimas inocentes, vítimas apanhadas na lufa-lufa das suas atribulações domésticas, vítimas escolhidas por isso mesmo, pela sua absoluta inocência.
De todos os imensos exemplos com que a história recente nos "brindou", dois chocaram-me particularmente: Bombaim e Madrid. Sabe-se lá porquê, senti estes dois ataques como um ataque próximo, presente, de uma forma especial e indizível como não aconteceu com mais nenhum (nem mesmo com o genésico e bárbaro 11/9 de Nova York, ou o 7/7 em Londres em lugares onde já estive e onde fui feliz). Em Bombaim talvez tenha evocado o rastro da História que nos liga, que nos ata àquela cidade da costa indiana. A velha Bombaim que Catarina de Bragança levou no seu dote para Inglaterra (conjuntamente com o hábito de tomar chá, para ensinar aos bárbaros ingleses), a velha Bombaim que foi, portanto, a porta dos ingleses naquela que viria a ser a jóia da coroa do British Empire. A cidade Porta da Índia, a mesma que viu aportar o último dos Vice-Reis britânicos, a do magnífico Hotel Taj Mahal, a porta do cosmopolitismo, o símbolo da Índia aberta ao mundo, profundamente plural e complicada (como, de resto, o próprio país o é!). Em Bombaim senti os laços que nos unem há mais de 500 anos (500 anos é obra, caramba!) ensanguentados, feridos naquilo que têm de mais próprio, de mais único, a saber, o encontro. O encontro com o outro, com a novidade, com a estranheza do estrangeiro, do outro-outro. Em Bombaim matou-se e morreu-se por ser estrangeiro, pelo carimbo de um passaporte. Atacou-se o estrangeiro, atacou-se a sua imagem, os seus símbolos, e os próprios símbolos do acolhimento, da hospedagem – os hotéis – da mão estendida ao próximo, mesmo quando esse próximo vem do outro lado do mundo.
Com o 11/M de Madrid aconteceu-me algo mais umbilical, mais genésico, talvez – descobri-me ibérico! Descobri-me da mesma cepa que as vítimas, com o mesmo património genético e cultural, com quase a mesma história. Tal como D.Manuel I protestando contra a proclamação dos Reis Católicos como soberanos de Espanha (que diabo, também ele era soberano da e na Hispânia!), senti a minha hispanidade, senti-me irmão na dor e no destino. Senti-me irmão no desespero e na revolta, no choro e no choque. Hora e mais horas passei em frente à televisão a acompanhar as vítimas, a chorar com elas, a rezar pelos mortos, pelos sobrevivos, pelos vivos. A rezar pelo perdão: o dos Homens e o de Deus. O perdão por tudo o que há de mais imperdoável, de mais pecaminoso no mundo. A rezar por aqueles que olharam nos olhos as vítimas inocentes do seu imenso crime e não vacilaram, e não hesitaram, e não abortaram a sanguinária tarefa para a qual se ofereceram! Descobri-me ibérico e descobri uma Espanha orgulhosa e viva que consigo admirar, que não vacila perante a adversidade, que lambe as suas feridas e avança – e isso é notável!
Da dificuldade que todos sentimos em lidar com esta realidade, em pensar sobre ela, responde a necessidade de nos ampararmos num dicionário, de lhe procuramos as definições, como todas, sempre boas e confortantes. Para que as palavras possam falar, para que as possamos escutar com maior atenção, para que o dito seja sempre mais conforme ao Dizer. Para que (com Heidegger e o seu célebre "Denken ist Danken") possamos agradecer-lhes a voz, o tom, a dobra.
Do terror podemos pois dizer que se trata da irrupção do mal. Trata-se de uma brecha, um rasgão na realidade, na realidade das coisas de todos os dias, na realidade do alinhamento comum das horas. Um rasgão súbito no tecido da vida. Dos homens e das civilizações. Uma brecha absoluta, terrível, uma interrupção forçada, um soluço do mundo; em suma: a visita do mal enquanto mal, o aparecimento do seu rosto e da sua obra. Os actos terroristas, quaisquer que eles sejam, com quaisquer que sejam as suas motivações, as suas justificações (a havê-las) provocam-me a sua recusa visceral. Provocam-me o nojo absoluto. Provocam-me o choque e a indignação infinitas. Uma espécie de luto, portanto. Daí que eu recuse a visão do mundo como tensão permanente entre exploradores e explorados, ou seja, a visão marxisto-leninisto-classicista do mundo. Porque essa é (malgré soi, ou talvez não!) uma das principais fontes, uma das raízes da visão do mundo que acha legítima a guerrilha para mudar o mundo (seja o sentido dessa mudança o que for). Que acha legítima a "luta armada" para reivindicar a mudança, para reivindicar a transformação do mundo. É por isso que sou incapaz de encontrar bondade e sentir qualquer tipo de respeito por "movimentos armados", "guerrilhas", "movimentos de «libertação» " e outros que tais! Recuso terminantemente todo e qualquer movimento armado reivindicativo de qualquer coisa (mesmo aqueles, como era o caso de Timor, aparentemente com motivações justíssimas). O problema está em achar que para mudar o mundo há que matar, torturar, aterrorizar o próximo, o outro. Efectivamente isso produz mudança no mundo, só suspeito é que essa mudança não seja aquela que gera um mundo melhor. Porque razão há-de alguém, para defender o que acredita ser justo e melhor (mesmo que seja a pior das tiranias…) matar aqueles que de si discordam, é algo que me ultrapassa completa e absolutamente!
Para com o terrorismo contemporâneo, herdeiro intelectual da "luta anti-colonial" (há em todo o vocabulário destes vitimados algozes a insistência no belicismo) e dos (ditos) não alinhados, não pode haver qualquer tipo de contemplações. Com assassinos bárbaros como estes (em todos os sentidos de "bárbaro", inclusive no original, "aquele que não fala grego", isto é, aquele que não herda a cultura grega, ou pelo menos uma certa tradição tolerante da Helade) não há negociação possível! Todo e qualquer compromisso, todo e qualquer entendimento é um reconhecimento de alguma legitimidade, de um mínimo de legitimidade, um mínimo, um resto que, quanto a mim, ofende todas as vítimas, ofende a sua memória e o seu sacrifício. E isso não posso aceitar! Com assassinos que massacram gente, gente que espera o comboio, gente que está num restaurante a comer, gente que calhou ter um passaporte do qual eles não gostam, gente que tem outra religião ou outra cor, gente que está doente num hospital (em Bombaim a barbárie nem se compadeceu com os doentes!), com gente desta, não há acordo possível. Não pode haver negociação, porque a honra e a dignidade não se negoceiam. A rectidão também não. Com gente desta só pode haver punição. Exemplar. Não as punições exemplares dadas aos nazis: não! Eles devem viver, presos, mas vivos. E devem ser confrontados com os seus actos, com os seus crimes, com os seus efeitos, com as suas vítimas. A punição será essa (e é talvez a pior de todas – viver com o que se fez).
E o mais irónico de tudo isto, o que é mais terrível, ainda mais terrível (dentro deste mundo os adjectivos vão aumentando o seu horror em crescendo, como se o mundo estivesse transformado numa imensa casa dos horrores) é que todos estes actos hediondos só vêm reforçar a legitimidade da ocidentalidade europeia e latina (digamo-lo sem falsos pudores) e uma certa superioridade da sua cultura sobre a cultura de morte que grassa por entre a miséria do (dito) 3º Mundo (e infelizmente, pelo dito 1º Mundo se olharmos para os casos Basco e Norte Irlandês). Somos superiores, não por razões extrínsecas à nossa vontade mas simplesmente porque somos a civilização que aboliu a escravatura, a pena de morte, que deu igualdade de oportunidades a todos, que sacralizou a vida humana (mesmo com as contradições de abortos e eutanásias, mesmo com todos os avanços e recuos, mesmo com todas as contradições
internas), que viu o outro como um outro inalienável, único e irrepetível. A civilização da magistralidade do outro, do próximo, como de resto, também se começa a ver nas mudanças operadas nas relações amorosas. Somos superiores na medida em que afirmemos os nossos valores com convicção, sem medo, sem vergonha e sem complexos! Na medida em que não cedamos um milímetro em face destes tiranos. Na medida em que proclamemos os valores da nossa civilização bem alto, porque eles são melhores, apesar de todos os pesares, de todos os tropeções e de todas as esfoladelas, eles são melhores. Porque eles preservam a vida e a dignidade, porque eles afirmam a democracia e a liberdade. Porque eles afirmam a liberdade intrínseca de cada um, a liberdade da sua consciência. E nós seremos sempre melhores enquanto enfrentarmos estes assassinos e tudo fizermos para os determos. Nós, ou seja, o mundo unido contra o terrorismo, contra a barbárie, nós seremos sempre melhores!
A superioridade da cultura ocidental (apesar de todas as algemas dos relativismos culturais é fácil aferir as diferenças profundas), aquela que vai de Jerusalém a Atenas, de Bizâncio a Roma, de Lisboa ao Rio de Janeiro, de Londres a Nova York, a superioridade da civilização de matriz cristã (é essa a sua mais forte matriz, goste-se ou não, creia-se ou não, mas é essa a sua matriz, o ventre que permitiu o nascimento dos direitos humanos e das sociedades modernas) será essa: a invenção (permanente e ainda a fazer-se) da política como democracia, a escolha da diplomacia em vez da guerra. Uma civilização que conseguiu alcançar níveis de progresso e realização inimagináveis, progresso comum, generalizado como nunca nenhuma outra antes dela. Esta será sempre uma mais-valia, um elemento de superioridade face a estes assassinos, a estes bárbaros e pobres humanos, pobres de humanidade. Eles são o rosto visível do mal, de um mal tão chocante, tão gratuito, quanto aquele que nos arrepia nos Campos de Extermínio nazis ou nos Gulagues comunistas. Agindo contra toda uma tradição tolerante no mundo, toda uma matriz que acaba por força da História por ser comum, comum à humanidade, consubstanciada nas grandes civilizações-berço orientais (seja na sua feição hindu, budista, taoista ou islâmica) cuja cultura de tolerância será ainda a origem, a remota e distante, mas a fazer-se presente origem do nosso mundo, estes são portanto os algozes do melhor que mais de dez mil anos de Civilização nos legaram. Dez mil anos difíceis, onde esta matriz conviveu com as maiores barbáries, os actos mais sanguinários possíveis. Mas resistiu e veio, no nosso mundo, impor a sua superioridade, impor a sua legitimidade, impor-se como destino comum do Homem.
E nunca nos esqueçamos de uma coisa: nada os parará. Nenhum escrúpulo os limita (um hospital Deus Nosso, um hospital!), nenhuma ética os inspira, nenhuma moral os dirige. É preciso que o compreendamos. É preciso que compreendamos que esta guerra ainda agora está a começar. Que nos preparemos para o que aí vem. Que não será fácil, como de resto nunca o foi. Que esta é uma batalha tão absoluta que decidirá o destino do mundo. Que compreendamos que só a força dos nossos valores, proclamados e afirmados, só a resistência ao medo e à cobardia, nos poderá levar à vitória. Sem armas, sem mortes, triunfaremos. De resto, e estamos em época de o lembrar, a dignidade do humano, a inviolabilidade da sua vida e a justiça sempre acabaram por triunfar. Depois de muito sangue e lágrimas, mas triunfaram sempre! Se outras coisas não nos ensinasse, ao menos isto aprenderíamos sempre do exemplo do Coliseu de Roma…
© Rene Magritte, Luce polare, 1927