Habituado, desde sempre, à simbologia e magia natalícia, comecei, de há poucos anos para cá a significar esta época pascal. Quer isto dizer que passei a viver esta época com um pouco mais de ligação ao que ela significa, ao que ela é, ao que ela representa, para além dos tradicionais jejuns das sextas e da gastronomia alusiva à quadra (por cá, nas horas da Sexta-feira Santa não se come nem carne nem peixe, mas apenas e só uma tradição familiar: Sopa de castanhas, broa de milho e erva-doce). Assim sendo, e em horas de meditação, de recolhimento e de luto (já repararam que até a meteorologia tem tendência para estar soturna neste dia?) aqui vos deixo uma das coisas mais bonitas que me veio encher por dentro a Páscoa: esta extraordinária Via Sacra, da autoria do meu caro amigo D. e que podeis encontrar originalmente no seu Sair das Palavras. Obrigado D. pelas lágrimas que me deste!
Oremos.
«1 - JESUS É CONDENADO À MORTE.
(Pilatos, desejoso de agradar à multidão, soltou-lhes Barrabás e, depois de mandar açoitar Jesus, entregou-O para ser crucificado).
Condenam-te, Senhor, na esperança de que assim acabarão contigo. Quando se calar a grande Palavra inquietante, que não cessava de pregar o amor, poderão enfim, retomar a sua vida tranquila. Estão longe de supor que a Tua morte será a vitória do amor. Nos séculos que se vão seguir, quantos cristão serão, por sua vez, condenados à morte e, por sua vez, alcançarão a grande vitória do amor. Ensina-nos, a todos nós, a não considerarmos a morte como uma falência vergonhosa, a não nos aproximarmos dela às arrecuas, mas a olhá-la de frente, a ver nela o grande acto de amor e de oferecimento que é preciso ir preparando a pouco e pouco, dia após dia.
2 - JESUS CARREGA A CRUZ
(Carregando às costas a Cruz, saiu para o chamado Lugar do Crânio, que em hebraico se diz Gólgota).
É para Ti uma velha amiga, Senhor, esta Cruz com que te carregam os ombros. Há anos que a esperas, que aspiras ir ao seu encontro. Ela aí está, aperta-a nos braços. A bem dizer, porém, o que Tu amas não é o sofrimento. Ele repugna-te tanto como a nós, mais do que a nós. O que Tu amas são esses biliões de homens que, por meio dela, vais salvar, para os quais vais obter a grande alegria que não acaba. Para nós, confessamo-lo com grande vergonha, a cruz é uma visitante inoportuna. Comportamo-nos, muitas vezes, como inimigos da Tua Cruz, procurando eliminá-la das nossas vidas. Dá-nos a inteligência da cruz, dá-nos o amor da cruz, da Tua Cruz.
3. JESUS CAI PELA PRIMEIRA VEZ
pesad
A Tua Cruz é demasiado a, as Tuas forças estão esgotadas, cais no caminho...
Eis perante nós, o Todo-Poderoso transformado em todo-fraco. Obrigado Senhor pela Tua fraqueza, a "fraqueza de Deus" de que falava o teu apóstolo Paulo. Um Deus heróico que levasse a Sua cruz a cantar, ter-nos-ia intimidado e desencorajado. Mas vendo-te caído por terra, não hesitamos em aproximar-nos de Ti, com um coração confiante. Senhor, tem piedade de nós quando o coração acaba por nos faltar, quando nas horas de extremo abatimento a Tua Lei nos parece demasiado pesada, quando o nosso amor é demasiadamente fraco. Preserva-nos do desespero insidioso, que tenta invadir a nossa alma, quando não chegamos a amar-Te, tanto como desejávamos. E quando finalmente tivermos compreendido que não podemos salvar-nos por nós próprios, faz com que venhamos a procurar a nossa salvação junto do nosso Deus caído.
4. JESUS ENCONTRA SUA MÃE
Eis que avistas Tua Mãe. O seu olhar que fazia sorrir o Teu olhar de Menino, o seu rosto que durante trinta e três anos foi a alegria do teu coração. Maria acompanha-Te. Tu não duvidas da sua fidelidade, mas agrada-Te ler nos seus olhos que ela está lá de acordo contigo. Como sempre. Uma vez mais. De acordo até lá, até à Tua morte sobre a cruz dos malfeitores. Assim, o seu amor, bem longe de Te reter, mais Te impele ainda, para o sacrifício supremo. Que Maria esteja, igualmente, no nosso caminho, para nos ensinar que amar não é enternecer-se, mas entreajudar-se a caminhar até ao maior dom de si mesmo. Felizes de nós, quando nos encorajamos uns aos outros a crescer no amor, a levar a nossa cruz, a darmo-nos sempre cada vez melhor.
5. SIMÃO LEVA A CRUZ DE JESUS
(Quando o iam conduzindo, pegaram não mão de um certo Simão de Cirene que voltava de um dia de trabalho no campo, e carregaram-no com a cruz, para a levar atrás de Jesus, com receio que Jesus morresse de exaustão antes de ser crucificado).
Um homem regressa dos campos. Os soldados requisitam-no. Bem aspirava ele ao repouso, mas é constrangido a tomar a Tua Cruz. Não poderia o Omnipotente transportar a Sua Cruz até ao fim?... Não é a fraqueza, é o amor que Te leva a desejar a ajuda de Simão. Saber precisar daquele que amamos é um dos segredos do amor. E não é só de Simão que Tu tens necessidade, mas de cada um de nós. Não que a redenção esteja acima das Tuas forças, mas Tu amas-nos demais para não desejar associar-nos à grande tarefa que o Pai Te confiou.
Diz a História que os dois filhos de Simão, Alexandre e Rufo, se contavam, alguns anos mais tarde, entre os mais fiéis dos primeiros cristãos. O pai tinha levado a Tua Cruz; os filhos tinham recebido a abundância da Tua graça.
6 - UMA MULHER ESTENDE A JESUS UMA TOALHA
(Esta é a relíquia hoje conhecida como a "toalha" de Verónica, ou como é geralmente conhecida "A Verónica". Encontra-se numa catedral em Roma, sendo que o Santo Sudário, que é o lençol que envolveu Cristo onde ficou estampado o rosto, se encontra na catedral de Turim, e alguns pedaços têm sido objecto de análise cientifica já com outros métodos depois do carbono 14 que especificam melhor a época a que pertence).
Fica perturbada essa mulher, ao ver o Teu pobre rosto desfigurado, coberto de pó e de sangue. E enquanto pensamos, talvez, que uma mesma piedade nos teria lançado para Ti, passamos todos os dias ao Teu lado sem Te reconhecer. Faz com que o nosso olhar saiba ver para lá das aparências, e reconhecer, através da face do outro, a face do próprio Deus.
7 - JESUS CAI PELA SEGUNDA VEZ
Já não tens a Cruz sobre os ombros, mas o Teu esgotamento é tão grande que uma simples pedra, no chão, basta para Te fazer cair de novo. Embora saibamos que sucumbiste no caminho, recusamo-nos, constantemente, a aceitar as nossas limitações, as nossas fraquezas, os nossos insucessos. Sonhamos, ainda, ingenuamente, atingir a salvação pelas nossas próprias forças. É porque persiste ainda o nosso orgulho, que tantas vezes os nossos desfalecimentos nos provocam um tão amargo despeito. Ajuda-nos a saber aceitar-nos como somos, sem por isso renunciarmos a tornar-nos como queres. Livra-nos de confundir santidade com heroísmo. Ensina-nos que o maior amor não consiste necessariamente em fazer grandes façanhas por aquele que amamos, mas em consentir, humildemente, ser salvos por ele.
8 - JESUS FALA ÀS MULHERES DE JERUSALÉM
(Seguiam-no uma grande multidão de povo e umas mulheres que se lamentavam e choravam por Ele. Jesus voltou-se para elas e disse-lhes: "Não choreis por Mim; chorai antes por vós mesmas e por vossos filhos. Porque, se tratam assim a madeira verde, o que acontecerá à seca?" - retirado do Evangelho do apóstolo Lucas, que mais tarde escreveu a biografia de Jesus.)
À vista destas mulheres que choram, das crianças que levam nos braços, e que serão a geração da catástrofe, Tu tens piedade: anuncias-lhes os dias trágicos a fim de que se apressem a voltar-se para Deus. Deixas-lhes um misterioso aviso: "se se trata assim a madeira verde, o que acontecerá à seca?" A madeira verde é a madeira viva, cheia de seiva, que dá fruto: és Tu, Senhor! É preciso todavia que seja podada para que dê um fruto mais abundante. A madeira seca é a que se separa do tronco, que só é boa para o fogo. São os judeus incrédulos e os errantes por opção. Que nós não sejamos madeira seca. Livra-nos dessa fácil confiança na salvação, que bem poderia não passar de uma caricatura de esperança.
9 - JESUS CAI PELA TERCEIRA VEZ
Porque cais Tu, Senhor, mais uma vez? Será que a lição é de uma importância capital e que Tu nos achas obstinadamente insubmissos? Na verdade, melhor ainda do que realizar grandes coisas por Deus, é aceitar que o próprio Deus faça grandes coisas em nós e por nós. Um dia, a pequena escrava Blandina suportava a s torturas com tal coragem, que os seus companheiros julgavam ver nela o próprio Crucificado, sofredor e triunfante.
10 - JESUS É DESPOJADO DAS SUAS VESTES
(Os soldados romanos repartiram entre si as Suas vestes, tirando-as à sorte)
Tinhas proclamado: "Bem-aventurados os pobres". Nesta hora em que te arrancam a túnica, Tu és o grande Pobre, o Bem-aventurado que possui o Reino dos Céus. Ensina-nos o amor da pobreza. Não dessa falsa pobreza que é desprezo da criaturas, mas daquela de que nos deste o exemplo e que consiste num coração tão rico de amor, que nunca mais possa ser escravo de qualquer criatura; num coração tão forte que não se inquiete já com o dia seguinte, nem cobice as riquezas da terra; num coração generoso, pronto a dar.
11 - JESUS É PREGADO NA CRUZ
(Quando chegaram ao Lugar do calvário, crucificaram-n'O a Ele e aos malfeitores, um à direita e o outro à esquerda. Jesus disse "Perdoa-lhes, ó pai, porque não sabem o que fazem).
Doravante, dizia Paulo, não quero mais conhecer, não quero mais pregar senão Jesus, e Jesus Crucificado, escândalo para os Judeus e loucura para os pagãos. Escândalo também para Pedro quando no caminho tentava dissuadir-Te de morreres. E contudo é esse mesmo Pedro que, trinta anos mais tarde, em Roma, abraça a Cruz chorando de alegria, considerando-se indigno de morrer como Tu e por isso pediu para ser crucificado de pernas para o ar porque dizia que não era digno de morrer como Tu. Loucura também para nós, que passamos o nosso tempo a usar de rodeios com ela. Somos partidários de uma religião razoável, prudente, ponderada, equilibrada. O pior é que não é a verdadeira. Não é a nossa. É uma self made. Onde há amor há loucura. Onde não há loucura já não há amor. A estas pessoas razoáveis que somos ensina a, como Tu, como todos os teus mártires e todos os Teus discípulos, a amar o desapego, a conhecer a sabedoria da cruz que nós tentamos constantemente eliminar das nossas vidas. E como temos exemplos de pessoas em fases terminais que aprendem a escolher entre a sensatez do mundo e a loucura do amor; do Teu amor. Maria, roga por aqueles de entre nós que têm no seu coração uma ferida aberta: pela mulher que não pode ter filhos, pelo filho com pais desavindos, ou dos pais cujo filho morreu há algumas semanas ou há alguns anos - a mim foi a Minha Mãe e... - por aqueles a quem a vida foi roubada na doçura da sua juventude, por aqueles que perderem o seu companheiro de jornada...
12 - JESUS MORRE NA CRUZ
"Por volta da hora sexta, as trevas cobriram toda a terra, até à hora nona, por o sol se haver eclipsado. O véu do Templo rasgou-se ao meio, e Jesus exclamou dando um grande grito: "Pai, nas Tuas Mãos entrego o Meu espírito" (São Lucas)
Morrer foi o maior acto de amor da Tua vida, porque foi o maior acto de obediência. Porque não havemos de considerar hoje, de frente, essa morte que um dia, será nossa? Porque não daremos uma aceitação sem reservas a essa morte? E se no dia da nossa morte, já não tivermos bastante presença de espírito para Ta oferecer, lembra-Te, que a demos hoje, antecipadamente, com o fervor do nosso pobre amor.
13 - JESUS É COLOCADO NOS BRAÇOS DE SUA MÃE
"Junto da Cruz de Jesus estavam Sua Mãe, a irmã de Sua Mãe, Maria, mulher de Cléofas, e Maria de Magdala" descreve o apóstolo João, que escreveu igualmente a biografia de Jesus, os chamados evangelhos.
Há alguns anos, Maria repousava em seus braços uma criancinha: o Seu olhar sorria ao teu olhar; o coração batia-lhe forte no peito e o seu corpo estava quente de encontro ao teu. Hoje, o seu olhar extinguiu-se. O Seu coração deixou de bater. O Seu corpo já está frio. Maria, aquele que tens nas tuas mãos não é como um amor hesitante, resignado que tu apresentas. Uma alegria misteriosa surge do mais profundo da tua dor, aquela de que Jesus havia falado: "Há mais alegria em dar do que em receber". Que na ultima hora sejam as tuas mãos que nos apresentem a Deus.
14 - JESUS É COLOCADO NO TÚMULO
"José de Arimateia e Nicodemos tomaram o Corpo de Jesus e envolveram-n'O em ligaduras, juntamente com perfumes, segundo a maneira de sepultar entre os Judeus. No lugar em que Ele tinha sido crucificado havia um horto e, no horto, um túmulo novo. Por causa da Preparação dos Judeus, como o túmulo estava perto, aí puseram Jesus" (Do evangelho de João).
Tu disseste, Senhor, que se o grão de trigo se recusa à morte, fica só e estéril: mas dá um fruto abundante se consente em morrer na terra. Vinte e um séculos passaram. A confirmação das Tuas palavras está perante nós: sobre o Teu túmulo germinou o Povo imenso dos Filhos de Deus a que chamamos Igreja. Cristo vence. Cristo reina. Cristo impera. Ensina a todos nós que a morte não é só a morte do último dia, mas a morte do quotidiano. É preciso que o homem velho que há em nos morra para que nasça o homem novo.
É Hora de Noa na Terra!
...Faço silêncio... »
© Paul Gauguin, Christ Jaune, 1889