quinta-feira, 30 de abril de 2009

São Domingos

A tarde estava luminosa, com aquela luz-branca-reflectida-no-azul que só Lisboa e o Tejo nos conseguem dar. Um cheirinho do Verão acariciava já a pele e despertava os sentidos. Ao passar por São Domingos resolvi entrar…

(Desta magnífica igreja da Baixa alfacinha apenas conhecia a fachada e alguma história. Sabia-a mais antiga do que o traço pombalino dos edifícios circundantes; sabia-a palco do início do Massacre de Lisboa de 1506, o dia em que o fanatismo abalou a convivência pacífica secular e os judeus e cristãos-novos da cidade foram barbaramente perseguidos e assassinados – o começo dos autos de fé, ainda assim, antes dos autos de fé; sabia-a palco dos últimos casamentos reais a que os portugueses tiveram a graça de assistir na Monarquia Constitucional; sabia-a consumida por um incêndio (na década de 50 do século passado pelo que apurei); sabia-a bela e majestosa, com uma belíssima fachada (agora sei que o seu portal e a varanda que o encima são memória sobrevivente da antiga capela do Paço da Ribeira). Não sabia mais.)


Entrei.


A princípio impressiona o tamanho: é uma grande igreja salão, mais alta e mais larga do que a maioria a que estamos habituados, ampla e funda. Depois impressiona(-me) o kitsch característico de uma igreja eminentemente popular (portanto, pop): as inefáveis e superabundantes flores de pano e plástico; os mantos das santas em cetim branco de marcha popular; os potes e jarras das lojas chinesas, imitação de dinastias perdidas; a mesa e cadeirão do altar em imitação de talha dourada… Mas nada disso interessa em face do que presenciamos. Do que realmente, ali, presenciamos – a presença de Deus! É extraordinária a presença do Altíssimo que lá se sente, que nos envolve, que nos fascina, que nos toca o coração – um lugar santo na sua máxima definição. Acompanhado pelo campo gregoriano que, baixinho, embala os corações dos crentes, percorri aquele chão secular, admirando alguns dos extraordinários exemplos de arte sacra. De tudo, fica-me a lembrança – impressa na alma – de como a Igreja de São Domingos, apesar de consumida por um incêndio (e nunca restaurada no seu anterior esplendor), apesar dos rebocos caídos e estalados, apesar das paredes ainda chamuscadas (às quais o fumo das velas acesas – sim, ali ainda há velas a sério e não aquelas coisas irritantes que piscam por uma moedinha! – apesar das enormes colunas estaladas e esventradas, apesar das portas em madeira tosca, apesar dos púlpitos destruídos… resiste. O essencial, o que interessa, resiste. E não há terramotos, não há incêndios, não há acessórios que o perturbem: a casa do Senhor é-o sempre, seja em São Pedro do Vaticano, seja numa cabana africana, seja em São Domingos em Lisboa – Deus é sempre lá! De São Domingos trago a impressão de ser uma das mais belas igrejas que tenho memória de haver visitado: não pelo estético, mas sim pelo ético – não é Heraclito quem diz Ηθος Ανθρωπος Δαιμων (Fragmento 119)?





©Imagem aqui .

terça-feira, 28 de abril de 2009

Wonderful life







... No need to run and hide
It's a wonderful, wonderful life
No need to laugh and cry
It's a wonderful, wonderful life ...


segunda-feira, 27 de abril de 2009

Ponto de fuga



É curioso como não me lembro de contigo me ter cruzado no atalho que segui. Não me lembro de te ter vislumbrado na vereda do caminho. E, no entanto, eu caminhei para ti. E tu caminhaste para mim.



Bolas! Estamos no ponto de fuga um do outro. Que havemos de fazer?









© Ana Silva

domingo, 26 de abril de 2009

sábado, 25 de abril de 2009

Deserdados


Por nunca esta foi a madrugada esperada, inteira e limpa. Por nunca esta foi a manhã da liberdade. Foi-o sim, é bom recordá-lo, a manhã da tirania. A manhã do medo. A manhã do terror. Uma simples manhã, levemente apercebida, sem real noção do que se passava. Muito menos do que a tarde reservava. Era ainda a alvorada, na primeira estação do tempo. Era ainda a estação das cantigas e das palavras permitidas. O céu só começava a escurecer, mas era, julgava-se, mais uma trovoada. Cedo passaria, como de resto a memória dizia que todas as anteriores haviam passado. E haviam sido muitas!

Depois as horas passaram e o medo chegou. Um medo nunca antes visto, nunca antes apercebido - sequer como possível - instalou-se frio e triste. Chegou a tirania mais tirana do que a anterior. Chegaram os insultos, as ameaças, os planos de fuga e os planos de resistência. À medida que os carrascos afiavam as facas, construíam as forcas, elaboravam as listas de alvos, por serravam-se as portas, blindavam-se os corações, entreabriam-se levemente as janelas. A sombra da tempestade, negra e carregada, aproximava-se de mansinho; umas vezes parecia cavalgar montanhas; outras ficava a rondar, à distância, como um predador que apenas espera o momento de avançar.

À medida que o dia cresceu, cresceu o medo e o terror. Limparam-se as armas, cavaram-se as trincheiras, recolheram-se as flores, limparam-se as mocas. Tudo com um sorriso, tudo com a fria dissimulação da aparente normalidade. Os nossos choravam, corriam aflitos e avisavam da retirada. As notícias que chegavam eram terríveis: por toda a parte lágrimas e grades; por toda a parte escravidão e miséria. As trevas vieram e pressentiu-se o cheiro a enxofre e pólvora. O combate estava prestes a começar…




Hoje, depois de um outro 25 mais inteiro e limpo, urge lembrar a memória dos deserdados. Dos dois grandes traídos deste 25: Marcello José das Neves Alves Caetano. Fernando José Salgueiro Maia. Estes dois homens cruzaram-se há 35 anos atrás num dos dias mais inesquecíveis para os dois. Um estava de saída. O outro estava de chegada. Ambos cumpriram o seu papel com honra e dignidade. Ambos lamentaram o seu destino. É engraçado como duas pessoas se podem cruzar uma única vez na vida e, apesar dessa brevidade, ficarem unidas para sempre.


Marcello Caetano chegou quando tinha de chegar ao lugar para o qual se tinha preparado toda uma vida. Académico brilhante e reconhecido, emprestou a sua inteligência ao serviço das ideias em que acreditava e que procurou defender sempre. Foi um homem impoluto e honrado, e um grande professor, "o professor mais completo" (no dizer de Marcelo Rebelo de Sousa). Defendia uma solução transitória para a questão do Ultramar que passava por um período federalista que preparasse para uma descolonização à brasileira. Não conseguiu impor a sua visão em tempo útil. Foi traído por aqueles em quem mais depositava esperanças. Cumpriu o papel que a história lhe tinha reservado até ao fim, até à rendição, com uma única preocupação: que o poder não caísse na rua e que o Ultramar não fosse abandonado à sua sorte. Perdeu e nenhuma das suas preocupações foram atendidas! (Quero aqui contar um episódio que julgo que demonstra bem o carácter deste homem: aquando da Crise Académica de 62, Caetano era professor do curso de Direito na FDUL. Era professor de um primo meu. Um dia, em plena greve estudantil, chega à aula e vê o meu primo à espera – era um estudante bolseiro, com grande dificuldade dos pais e como tal não se podia dar aos luxos dos seus colegas esquerdo-burgueses. Marcello Caetano olhou para ele e perguntou-lhe o que fazia ele ali; ele respondeu-lhe que estava à espera da aula, ao que o [então também Reitor] Professor retorquiu: "Vá-se embora e vá ter com os seus colegas. O seu lugar é lá. O meu aqui." Ou seja: tudo tem o seu lugar e é preciso saber cumpri-lo e honrá-lo até ao fim!]



Salgueiro Maia saiu da EPC de Santarém para acabar com "o estado a que isto chegou!". Soube comandar e fazer-se obedecer. Mais: soube fazer-se respeitar e honrar. Dirigiu as operações do golpe militar que depôs Caetano do Poder. Conseguiu-o quase sem derramamento de sangue (graças a si e às ordens de Caetano que, podendo resistir, não o fez, preservando até ao último momento o sangue português que jurou defender). Quando entrou no Quartel do Carmo, para exigir a rendição de Caetano, portou-se como um militar e como homem honrado! Cumpriu as suas promessas e o seu dever (fiel ao que defendia e ao que acreditava). Mais tarde, participou no outro
25. Depois recolheu-se ao seu lugar, recusando as honrarias e as recompensas do parte e reparte que os novos donos do Poder (muitos seus antigos camaradas) lhe propuseram. Foi o único herói dos vencedores, porque foi o único que se manteve impoluto (como o escândalo que a recente promoção de Otelo Saraiva de Carvalho – terrorista condenado e politicamente absolvido – comprova!) e fiel aos seus princípios. Dele, um camarada dizia há poucos dias: "(…) se soubesse ao que isto chegava, não tinha saído de Santarém".




© Marcello Caetano, Maluda, 1970.

© Salgueiro Maia, Henrique Tigo.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Sempre-Noiva





Festa cá dentro.

Entre os canaviais

Ia a caminho da cama, levando como companhia o jornal diário. De repente uma súbita vontade de um romance. Mas o quê da infinidade que vou comprando e que vou acumulando, qual formiga, para os tempos de Inverno? O que me apetecia? E de repente um nome, uma vontade quase indómita…



- A Morgadinha dos Cannaviaes, de Júlio Diniz (assim mesmo, com a bela grafia pré-republicana, ou não fosse o vetusto exemplar procedente da mocidade ainda novecentista da Tia Beatriz). É isto!


Comecei, um pouco a medo, com a desconfiança de uma anterior incursão falhada à Uma Família Inglesa. Subitamente, a surpresa (arrogante):



- O tipo até não escreve mal… tirando estes endereçamentos ao leitor, isto até é engraçado e muito bem escrito! E que magníficos diálogos!



Aos poucos, a narrativa a correr, as gargalhadas com as invectivas de Magdalena, "a morgadinha". (Em tempos de infância recordo vagamente uma série da RTP sobre este romance… no entanto tudo o que me ficou dessas imagens foi a imagem e o som de um relógio de parede em cena…) Aos poucos, a "doença" de Henrique de Sousellas a desaparecer por entre os canaviais. Aos poucos, toda aquela aldeia a ganhar vida, todas aquelas personagens a erguerem-se e a viverem à minha frente. As páginas a passarem, devagar de mais, demasiadamente devagar – se há coisa que me acontece sempre que pego num romance é uma avidez sem limite em lhe descobrir os segredos, em lhe avistar o desfecho, em lhe saborear o final. Angustio-me, arrelio-me, fico suspenso, conto as páginas que ainda faltam



O espanto! Aquele que eu tinha como um escritor de segunda do nosso novecentos, aquele que eu tinha como um "chato e aborrecido prosador", descobre-se página a página perante mim como um grande escritor, daqueles que conseguem escrever um livro como se pintassem a paisagem que têm perante si em traços impressionistas, em pinceladas fortes e decisivas, sem fraquejarem, sem arriscarem cair no naturalismo mais banal. Não! Em A Morgadinha dos Cannaviaes temos um grande retrato do Portugal oitocentista pré-queirosiano. Uma grande tela do tipo de sociedade, dos seus vícios, das suas manias, das suas virtudes, e principalmente, das suas tensões, das suas lutas, das suas indignações, da sua vida cívica. Em Júlio Diniz acabei por descobrir um grande escritor político, do político e da política à portuguesa. De novecentos e de agora. Em suma: um grande escritor! E quem conhecer a obra que me diga se as cenas das altercações populares (na igreja, e depois no cemitério) não são grandes páginas da literatura em português?

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Descolonização

Há gente neste mundo que não cessa de nos surpreender, e – pior – sempre pela negativa. Na política portuguesa isso acontece-me a toda a hora com Mário Soares. É daquelas figuras da nossa história recente (infelizmente!) que me leva quase a ranger o dente sempre que sou obrigado a pôr-lhe a vista em cima – e infelizmente, também, isso acontece-me com grande frequência.

Uma vez mais, o Sr. Soares voltou a um dos seus temas de eleição: a descolonização. E mais uma vez, mergulhado naquela "modéstia" que todos lhe conhecemos, descreveu-a como "óptima" e como causa de "admiração" pelos restantes países europeus. É a velha tese da "descolonização portuguesa exemplar", mito maior do regime em que vivemos e uma das mais descaradas e estúpidas mentiras de sempre! Estúpida porque facilmente desmontável, tamanha é a ficção e o delírio! Ora, para o Sr. Soares e restantes compagnons de route, o "abandono e foge com a bandeira" que Portugal praticou de Cabo Verde a Timor, foi, pois – pasme-se – exemplar. E óptimo. E foi-o, em parte (obviamente, fora parte o "magnífico Ministro dos Negócios Estrangeiros que a aprazou"), pelo curto espaço de tempo em que foi resolvida e efectuada… Efectivamente deve haver orgasmos que duram mais (graças a Deus!) do que durou a "descolonização" portuguesa. Esta é o exemplo clássico do que se diz que antes de ser, já o era!


Por mim, não tenho qualquer dúvida que a "descolonização portuguesa" ficará nos manuais de História como a maior tragédia do século XX português. E no panorama mundial terá, certamente, o seu lugar entre as grandes tragédias da humanidade. Pior: entre os grandes crimes da humanidade. E estou certo também da dura condenação que os seus responsáveis sofrerão – talvez (e infelizmente!) não em vida, mas postumamente como acontece em muitas destas coisas. Doutra forma nunca os milhões de mortos e vidas destruídas da nossa "descolonização" poderão descansar! Se houver alguma justiça neste mundo, a condenação cairá sobre esta pandilha que abandonou à sua triste sorte os milhões de habitantes do Ultramar Português.




Decidida e "efectuada" em um ano e meio é natural que tenha causado espanto nas restantes potências coloniais europeias: o Reino Unido ainda hoje não a fez completamente; a França ainda hoje não a fez completamente; a Holanda ainda hoje não a fez completamente; a Espanha ainda hoje não a fez completamente; a Dinamarca ainda hoje não a fez completamente; a Rússia nunca a fez. A grande diferença entre Portugal e os restantes parceiros europeus (para além de termos sido os únicos a fazê-la absolutamente contra tudo e todos) é que todas as outras potências, cedo ou tarde, efectuaram processos de auto-determinação nos territórios ultramarinos. Só Portugal não o fez. Isto quando o nosso exército foi, de todos os "exércitos coloniais", aquele que incorporou maior número de "nativos" (expressão do "politiquês" nacional para designar os indivíduos negros que participaram no nosso exército ultramarino; ao que parece, os nativos brancos são apenas vistos como "colonizadores", apesar de muitos deles nunca haverem pisado o solo europeu pátrio até ao êxodo), transformando a Guerra do Ultramar naquela coisa estranha de ser uma guerra entre irmãos (ainda no último episódio do documentário A Guerra, do insuspeito Joaquim Furtado, essa estranheza era sublinhada) – sublinhe-se que toda essa gente, portugueses como nós, que juraram servir e defender a bandeira portuguesa, foram também abandonados à sua sorte, nas mãos dos seus carrascos, sem ter para onde fugir, porque até a nacionalidade perderam por decreto! A sua memória (porque é dela que falamos em muitos casos) deve ser lembrada e honrada por todos nós!


Também convém não esquecer o mais de meio milhão de portugueses que, por causa dessa coisa "óptima", ficaram sem nada, sendo obrigados a fugir para salvar a vida. Brancos e negros, amarelos ou azuis, mais de meio milhão (e convirá, um dia, sabe exactamente quantos sofreram essa violência extrema) fugiu em pânico à frente das balas que voavam sobre as suas cabeças. Porque essa foi outra das "glórias" da nossa "descolonização": deixámos dois territórios amarrados à força a outros (Cabinda, amarrada a Angola e ainda hoje sujeita à repressão angolana, apesar do acordo que os seus Régulos firmaram com a Coroa Portuguesa, portanto, com o Estado Português; e Cabo Verde que foi amarrado num "pacote" com a Guiné Bissau), deixámos dois em guerra civil (Angola e Moçambique) e outro invadido por uma potência estrangeira (Timor-Leste). Todos os mortos dessas guerras, todas as vítimas desse espoliamento, são mortos e vítimas de Portugal, dos seus erros e das suas precipitações! Todos! Sem excepção.


E qual foi o resultado disto? Meio milhão literalmente sem eira nem beira, traumatizado, integrado à força na Europa, em condições penosíssimas, sofrendo insultos múltiplos pela pandilha do regime. O país caído neste marasmo, nesta pântano sem fim à vista, com taxas de crescimento residuais que apenas nos afastam mais do nível dos nossos parceiros europeus (compare-se para isso o nível de desenvolvimento em que nos classificávamos antes da descolonização com o actual, para se perceber o logro que nos foi vendido!). Angola destruída pela guerra e recentemente transformada numa oligarquia do petróleo dominada pelas famílias dos seus supostos "libertadores" (sem falar dos imensos crimes contra a humanidade que por lá foram praticados, alguns ainda sob a bandeira portuguesa, e que conseguiram transformar um dos países mais prósperos e bem organizado de África, naquilo que sabemos); Moçambique arrasado pela guerra civil, só agora parece estar a reerguer-se do choque; a Guiné-Bissau é um narco-Estado e está transformada num claríssimo estado-falhado; São Tomé e Príncipe luta diariamente pela sobrevivência; Timor-Leste foi dizimado, arrasado e massacrado pela invasão indonésia (causada pelo abandono das tropas portuguesas, convém não esquecer!)e luta para erguer um Estado a partir do zero…




Motivos para nos orgulharmos dessa nossa (dita) "descolonização exemplar"? Não vejo um único! Se um houvesse (o fim da Guerra do Ultramar) era um falso motivo: afinal, a guerra no ultramar durou e continuou (fazendo muitas mais vítimas) para além da presença portuguesa…


Mas havia uma forma de eu poder, eventualmente, ter um mínimo de consideração pelo Sr. Soares e restante trupe: se eles, olhando para trás, olhando para a "obra" sangrenta que ergueram pelas suas próprias mãos, reconhecessem os erros crassos, reconhecessem que a "descolonização portuguesa" foi (e é ainda) uma tragédia absoluta. Aí, talvez eu pudesse olhar para eles. Talvez… Assim, só resta a sua desonestidade intelectual e as suas imensas culpas. A história não os absolverá!




P.S. Sobre os (ditos) retornados há um exercício que costumo fazer que permite ver, com absoluta clareza, do que se fala: na pior das hipóteses (da qual eu não partilho, mas vá…) essa gente era emigrante nos territórios ultramarinos; na pior das hipóteses, sublinho; tão emigrantes, quanto os nossos emigrantes em França, na Venezuela, ou na Suíça. Ora, o que pensaríamos se os nossos compatriotas fossem, amanhã, de um dia para o outro, expulsos desses países, das suas casas, dos seus empregos, com as suas famílias, pelo simples motivo de serem portugueses, ou brancos, ou negros, isto é, serem estrangeiros (no sentido mais íntimo, mais próprio da palavra estrangeiro: o outro, o diferente, o que é de fora, o que não é exactamente igual, o que fala diferentemente)? O que pensaríamos, o que diríamos disso? Como adjectivaríamos um tal acto?




E agora, para podermos compreender melhor o que se passou: o que faríamos se isso acontecesse no sítio onde vivemos, onde nascemos, onde temos todas as nossas memórias e as nossas amizades? Onde dissemos as primeiras palavras, onde nos apaixonámos pela primeira vez, onde temos os nossos mortos? Em suma: o que faríamos de fôssemos obrigados ao êxodo, ao exílio?

terça-feira, 21 de abril de 2009

Definições

"Ricardo Gonçalves, o mais heterodoxo deputado do PS, numa conversa de jornalistas em que se comentavam os casos mediáticos de corrupção política, desarmou-os com esta teoria: «A corrupção deve ser entendida como uma arma política natural da esquerda para corresponder ao princípio marxista da 'acumulação primária de capital' – e assim se criar uma nova burguesia deste regime»."

Sol, 18 de Abril de 2009, página 21.



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In Memoriam: Nina Simone

domingo, 19 de abril de 2009

Sobre os petizes

Deambulando pelos blogues amigos encontrei no Quase nunca esta pérola que deveria constituir um curso obrigatório para os futuros papás, leccionado em todas as aulas de preparação para o parto, consultórios de obstetrícia, vãos de escada de maternidades, ou outros sítios considerados (in)convenientes... Se fosse possível através de uma pílula ou injecção intra-venosa também não era mau pensado...



(O que mais impressiona (positivamente) é ouvir alguém que não anda agrilhoado pela ditadura do politicamente correcto, esse mal civilizacional, pior do que qualquer gripe das aves (a propósito: que é feito da pandemia para a qual nos andaram a preparar? Lá está: de repente, o politicamente correcto desviou a atenção... ou isso, ou os grupos farmacêuticos...). Mais: alguém que escapa - e despreza - as pseudo-cientificidades das Ciências da Educação e dos seus mitos. E como isto me reforça a convicção de que a Psicanálise ainda tem muito a dar à humanidade e é infinitamente mais interessante do que a sua irmã (e a bastardia é já, em si, toda uma questão filosófico-psicanalítica...) Psicologia!)








© Las Meninas, 1656, Diego Velázquez

sábado, 18 de abril de 2009

Canção das horas nº 15

O luto continua

A Assembleia da República aprovou vários diplomas onde constam coisas tão insignificantes como a possibilidade de buscas domiciliárias sem mandato (vi aqui), a perseguição de contribuintes (sob a capa do combate à evasão fiscal e à corrupção transforma-se o nosso já kafkiano Estado no pior pesadelo de Kafka!), ou o sempre peregrino "imposto sobre fortunas" - a Esquerda com o seu habitual conjunto de traumas psicanalíticos ainda tem o pensamento condicionado pelo marxismo e a sua noção de riqueza estática, ou seja, a riqueza como um bolo bem ou mal distribuído (portanto, quem for rico é porque roubou/explorou/extorquiu quem é pobre ou menos abonado, constituindo a riqueza, em última análise, um crime de lesa sociedade). E isto, num mundo globalizado e com a economia fortemente virtualizada (a actual crise não é senão o sintoma mais evidente) é tão mais grave, quanto já sabemos o resultado prático da coisa: mais pobreza e mais miséria, afinal a grande obra de sempre dos sociais-marxismos-comunismos por todo o mundo!


O que mais inquieta é que isto começa a fazer lembrar a boutade atribuída ao (infelizmente) sempre omnipresente Otelo Saraiva de Carvalho (se não tiver sido ele o autor que me perdoe por lhe aumentar o já extenso rol de alarvidades ditas e praticadas!): conta-se que nos idos anos "quentes e revolucionários" (quando em França se falava de Portugal como "um manicómio em auto-gestão", o que é bastante… imagético!), estando Otelo (ou outra qualquer personagem da shakespeariana trama da revolução à portuguesa, repito) de visita à social-democrata Suécia terá exclamado com orgulho: - "Em Portugal já quase acabámos com os ricos!". Ao que o governante indígena lhe terá retorquido: -" Ah, sim? Nós por cá já quase acabámos com os pobres…"




Si non è vero, è bene trovato!




©Imagem aqui.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Anjos e demónios

No dia 4 de Março de 2001 um grupo de cidadãos, decididos a desfrutar do espectáculo proporcionado pela anunciada chegada da Primavera, organizou-se e rumou às belas paragens transmontanas. Lá contemplaram a beleza etérea que o espectáculo das amendoeiras em flor lhes pôde proporcionar e, de pupilas ainda não refeitas de tanta beleza, voltaram a casa. Ao contrário de Ulisses, ainda não regressaram. Ainda hoje, os corações daqueles que amam as 59 vítimas mortais da "tragédia de Entre-os-Rios" certamente se sobressaltam sempre que alguém bate à porta: principalmente os familiares e amigos das 33 vítimas cujos corpos nunca foram recuperados. Cujo luto nunca pôde ser fechado, se algum, algum dia puder, efectivamente, ser fechado. A odisseia continua. A colcha não pode ser acabada.

Os factos são bem conhecidos. Os pilares da vetusta Ponte Hintze Ribeiro não aguentaram o peso do seculum e cederam precisamente à passagem daquelas almas banhadas da beleza da criação. Os inquéritos deram o de sempre: nada. A culpa, já habituada à má fama, lá foi morrer solteira para o seu triste e solitário canto habitual. Os que cá ficaram tiveram a sua boca "adoçada" pelas palavras licenciosas dos políticos e pelos cheques convertidos em "investimento público" na região. O tempo correu, como corre sempre, o Douro escorreu, como escorre sempre, e o fundo das águas deu o merecido repouso a quem as teve como última casa no mundo. Como é óbvio nunca foram apurados culpados, porque em Portugal nunca há culpa: há apenas uma ligeiríssima impressão maçadora que passa com o silêncio. E o tempo.


Eis que de repente ouvimos dizer que as famílias receberam uma conta astronómica (li algo à volta de 400 mil euros em custas judiciais) para pagar. Rapidamente houve quem viesse desmentir e dizer que "afinal são só cerca de 57 mil euros"… É nestas alturas que acho que a falta de vergonha na cara e de decência é ilimitada!!! Quer dizer, para além da perda (irreparável) dos familiares, para além de todo o tempo que passou, para além de ninguém pagar (e exemplarmente!) pela culpa que teve, ainda têm de pagar ao excelso Estado que nada fez para os proteger (como era seu dever) ou para os redimir (como era seu dever). O Estado Português converteu-se, definitivamente, num estado vadio. Um Estado falhado. Um Estado sem palavra nem honra. Um Estado ladrão. Um Estado cúmplice de assassínio e extorsão! É disto que se trata. Exigir custas a quem, simplesmente, exigia que o Estado fizesse o seu papel – que fosse Estado, em suma – é simplesmente inacreditável e inaceitável! Se é para isto, então mais vale mesmo entregar as chaves em Badajoz e pedir asilo… Começa a ser demais para valer a pena!




P.S.1. Ouvi também, a propósito disto, uns pedidos ao Sr. Presidente da República e a Sua Excelência o Sr. Ministro da Justiça, no sentido de Suas Excelência moverem a sua influência para que as ditas custas sejam perdoadas (ou assumidas pelo Estado como, me parece, é seu dever e obrigação!). Macacos me mordam se este pedido, e o seu eventual atendimento pelas altíssimas figuras acima mencionadas, não configura o esboroar do que resta da separação de poderes!!! Quer dizer: a Justiça, a douta Justiça decide e o poder legislativo intervém noutro sentido… devo ser eu que não estou bem a ver a coisa…




P.S.2. Parece-me que os nossos agentes judicias andam a precisar de umas aulinhas básicas sobre a Justiça e o Justo. "O que é a justiça?", "O que é o justo?", "Qual a diferença entre o justo e o conforme à lei?", "O injusto do justo", eis alguns dos temas que poderiam ser aprofundados, e que eu, generosa e justissimamente, desde já proponho. E quem diz "aprofundados", diz estudados pela primeira vez; algo me diz que nunca nos nossos tribunais se ouviu falar de tais esoterismos e minudências






© Anjo de Entre-os-Rios.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Identidades

Já aqui falei da profunda comoção que tive ao assistir ao documentário sobre a presença portuguesa, a sua herança e a sua permanência, em Cochim. Acontece que durante toda a semana passada a 2: transmitiu toda uma série de documentários (não sei se todos de Fernando Matos Silva, mas julgo que sim) sobre a presença portuguesa no Índico, de que o de Cochim foi apenas o primeiro. Seguiram-se: Ilha de Moçambique – A África dos Vice-Reis (que não vi); Goa, A Roma do Oriente (que também não vi); Malaca – A porta para o Oriente sem fim (que vi); e finalmente, já na Sexta-feira Santa dois episódios sobre Damão e Diu (o primeiro intitulado Diu é uma dádiva de Deus e o segundo, Damão, paraíso de paz e solidão) que vi, e embevecido. Também já aqui aflorei o fascínio que estas paragens exercem sobre mim e não vou voltar. Mas parece-me que uma nova reflexão identitária é necessária. Em todos os que vi (e presumo que, nos que não vi, mas dos quais já conheço alguma coisa, o mesmo se verifique) a presença portuguesa não é vista como uma "agressão", uma "conquista" imposta por um povo estrangeiro e usurpador, uma "nódoa" histórica. Não. Em todos os lados se repete uma certa nostalgia do ser português, do modo português de ver o mundo e as coisas, o qual parece ter deixado muita semente por aquelas terras do ultramar. Por todo o lado a língua portuguesa vai resistindo, não só às línguas locais, mas também ao avanço inexorável da grande língua-franca dos nossos dias, o inglês (ao que parece, substituindo o português que, entre o séculos XVI e XVIII, foi a grande língua de negócios e de transacção na Ásia). E isto é tanto mais curioso quanto, se exceptuarmos os territórios do Antigo Estado Português da Índia e de Moçambique (apenas perdidos na segunda metade do século XX, portanto, ainda agora), os outros territórios perderam o vínculo lusitano há mais de dois séculos! Coisa notável esta de ser português. De falar português. E, pelo que li aqui há tempo numa reportagem algures, também naquelas ilhas que hoje formam a Indonésia se encontram comunidades falantes de uma qualquer papiação de raiz portuguesa, lembrando-me até de uma onde anualmente se realiza uma procissão em honra de Nossa Senhora (já não me recordo de qual a invocação), procissão em barcos de pescadores (tal como por cá abundam, ou pelo Brasil), com "missais" manuscritos e herdados de geração em geração, nessa língua distante e tão familiar para nós… E, coisa não menos admirável, lembro-me que, nesse que é o maior país muçulmano do mundo, os islâmicos (esmagadoramente maioritários na região) protegem aquelas comunidades católicas ali encravadas pela acção e pela influência dos nossos antepassados. Em tempos de "alianças de civilizações" e afins (essa gente anda a pensar que está a inventar o mundo, é o que é!), que bom seria que estes exemplos de aliança avant-garde fossem estudados, protegidos e continuados! Que bom e que bonito!



E em todos estes casos, outra questão identitária salta à vista: a religião. Não é apenas a língua, a História, a tradição e a herança cultural (e genética, diga-se em abono da verdade, que isto de ser português também sempre foi um saltar de flor em flor…) tout cour que explicam esta resistência da identidade portuguesa. Isso passa, parece-me, em grande medida pelo catolicismo. Pela grande resistência, adaptação e permanência do catolicismo. Ou seja: uma certa maneira de ser português é, também e sempre, uma certa maneira de ser católico. E a isto não conseguem escapar os ateus, os agnósticos e os crentes de outras confissões (lamento aos mais empedernidos!). Por algum motivo do qual desconheço a forma exacta (mas que talvez passe pela profunda e íntima ligação entre o nascimento de Portugal e a Igreja Católica… de resto, esotericamente, Fernando Pessoa já reflectiu sobre essa íntima relação), ser português é também ser católico. Aqueles nossos de Malaca, de Cochim, de Goa, de Damão, de Diu, de Macau, de Moçambique, são-no também e em grande medida devido a esse extraordinário fenómeno (ontologicamente falando) de ser católico. Uma história e uma teoria sobre isso é necessária, porque parece-me por demais evidente. Poderíamos supor que isso se devesse à resistência ao invasor protestante (holandês e inglês); mas isso não explica tudo. E não explica, sobretudo, porque é que gente que nunca conheceu Portugal, que nunca viveu sob administração portuguesa, que é natural do oriente, que é cidadã de países independentes, se sente tão portuguesa. Ainda tão portuguesa (aliás, em Malaca o governo trata "os portugueses" como um grupo étnico à parte). E porquê "tão portuguesa" e não "tão inglesa" ou "tão holandesa" (afinal, ambos permaneceram por essas paragens por muito mais tempo do que nós)? Ou, ainda mais prosaicamente, tão simplesmente "indiana", "malaia", "indonésia"?








Vem isto chocar com a mitologia da colonização (e da descolonização) em que fomos (des)educados. Todas as categorias do "explorador" e do "explorado", decalcadas da cartilha de cordel marxista (e da sua visão infantil do mundo), ficam secas e mudas para explicar esta situação: como se compreende que o "explorado", a "vítima", tenha saudades, sinta a falta do "opressor", do "explorador", do "colonizador"?! Eu lembro-me sempre de, aqui há uns anos, em Coimbra, haver conhecido uma rapariga timorense que, ao abrigo da cooperação, lá estudava medicina; um dia, sentados a cavaquear no café perguntei-lhe qual a opinião/visão que ela timorense (e eles timorenses) tinha da nossa "exemplar" descolonização (se for como exemplo de "tudo o que nunca se deve sequer pensar fazer com uma qualquer descolonização"). A resposta deixou-me abismado, não porque algum dia tenha manjado essas mitologias (Deus livrou-me desse fardo!), mas porque estava à espera de alguma hesitação, de alguma espécie de silêncio meditativo. Não. Ela disparou-me um simples: -"Portugal foi muito estúpido! Podíamos estar todos unidos e mais ricos se não nos tivessem abandonado.". E eu, embaraçado com a prontidão, só consegui pedir-lhe desculpa pela parte de sofrimento que lhe infligi enquanto português (e como tal "herdeiro") dos criminosos e cobardes que abanaram os antepassados dela à mercê da bárbara invasão estrangeira. É pouco, eu sei, mas nada mais me ocorreu...




Muito temos, pois, para meditar, para pensar e para repensar. Volto a dizer que 35 anos – uma geração madura – me parece tempo mais do que suficiente para um olhar frio sobre os acontecimentos de 74/75. E para um olhar frio e distante sobre o ciclo Imperial. Muitos fios haverá para tecer, e muitos outros (tantos, tantos, tantos!) para desfiar. Eu por mim cá continuarei o esforço de conhecer o grande legado lusitano no mundo. Legado esse que não nos deve envergonhar em nada: muito pelo contrário! Estou certo que a História vai saber olhar, entender e reconhecer a colonização à portuguesa como algo muito diferente da restante colonização (até mesmo absolutamente diferente da espanhola). De resto, pelo menos desde a Conferência de Berlim de 1884-1885 que isso nos está sendo devido!




Que estes trabalhos de Hércules à portuguesa (necessários, sempre necessários!) nunca nos afastem do futuro. E do futuro de Portugal e da portugalidade no mundo. Que passará pela língua (um dos nossos maiores legados ao mundo), mas não só. Se há coisa lamentada pelos vários participantes nos vários documentários a que assisti é, precisamente, o abandono (mais um!) a que são votados pela Nação Portuguesa. Abandono esse que passa, não só pela imperiosa necessidade de proteger, estudar e recuperar o imenso património arquitectónico e artístico português no mundo (só em Goa são 365 igrejas!) – sacro, militar e civil; mas igualmente pela ausência gravosa de uma política cultural ultramarina onde se enquadre uma igualmente necessária política da língua, que, como é óbvio, em nada passa por acordos arranjados à pressa para agradar a troianos… Uma política da língua que inclua a sua imensa e fabulosa diversidade, que a projecte no mundo, que a dinamize onde ela resiste com tamanhas dificuldades! (se em Malaca e Cochim até se poderá compreender a ausência da presença portuguesa, nos antigos territórios do Estado Português da
Índia é todo o trabalho e o esforço de mais de 450 anos que é posto em causa!) Se soubermos ser os herdeiros à altura do que o Reino de Portugal nos exige, outro galo cantará em Portugal, e, pela força do exemplo e dos nossos valores universalmente partilháveis, também todo o mundo o ouvirá. E os nossos irmãos de Cochim, com o seus ranchos "castiçamente" vestidos à minhota, bem que gostarão de escutar o canto do rei de Barcelos…!








P.S. Se um dos nossos maiores legados para a cultura mundial é precisamente a arte, a arte do mobiliário é das que mais alto conseguimos erguer. Não é de hoje que fabricamos bons, belos e úteis móveis! Fazemo-lo há séculos com mestria reconhecida internacionalmente. Quanto a mim, um dos expoentes da nossa arte de mobiliário e decoração está no estilo indo-português: o seu sincretismo elegante, culto e refinado fascina-me e deixa-me sempre embevecido pela obra que "um milhão e meio" de almas conseguiu erguer no mundo. Aqui vos deixo um magnífico e sumptuoso contador (se há coisa que adoro são contadores, com as suas gavetinhas e os seus segredos) indo-português que podeis apreciar no Museu Santos Rocha, na Figueira da Foz.

domingo, 12 de abril de 2009

Páscoa


Neste dia de alegria profunda e sanguínea. Neste dia de risos no coração e de incenso na alma. Neste dia de hossanas e flores nas mãos...





Com a tua letra



Porque eu amo-te, quer dizer, eu estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.

Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra.




Fernando Assis Pacheco



© Imagem aqui.

sábado, 11 de abril de 2009

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Ecce Homo



Habituado, desde sempre, à simbologia e magia natalícia, comecei, de há poucos anos para cá a significar esta época pascal. Quer isto dizer que passei a viver esta época com um pouco mais de ligação ao que ela significa, ao que ela é, ao que ela representa, para além dos tradicionais jejuns das sextas e da gastronomia alusiva à quadra (por cá, nas horas da Sexta-feira Santa não se come nem carne nem peixe, mas apenas e só uma tradição familiar: Sopa de castanhas, broa de milho e erva-doce). Assim sendo, e em horas de meditação, de recolhimento e de luto (já repararam que até a meteorologia tem tendência para estar soturna neste dia?) aqui vos deixo uma das coisas mais bonitas que me veio encher por dentro a Páscoa: esta extraordinária Via Sacra, da autoria do meu caro amigo D. e que podeis encontrar originalmente no seu Sair das Palavras. Obrigado D. pelas lágrimas que me deste!



Oremos.




«1 - JESUS É CONDENADO À MORTE.




(Pilatos, desejoso de agradar à multidão, soltou-lhes Barrabás e, depois de mandar açoitar Jesus, entregou-O para ser crucificado).




Condenam-te, Senhor, na esperança de que assim acabarão contigo. Quando se calar a grande Palavra inquietante, que não cessava de pregar o amor, poderão enfim, retomar a sua vida tranquila. Estão longe de supor que a Tua morte será a vitória do amor. Nos séculos que se vão seguir, quantos cristão serão, por sua vez, condenados à morte e, por sua vez, alcançarão a grande vitória do amor. Ensina-nos, a todos nós, a não considerarmos a morte como uma falência vergonhosa, a não nos aproximarmos dela às arrecuas, mas a olhá-la de frente, a ver nela o grande acto de amor e de oferecimento que é preciso ir preparando a pouco e pouco, dia após dia.






2 - JESUS CARREGA A CRUZ




(Carregando às costas a Cruz, saiu para o chamado Lugar do Crânio, que em hebraico se diz Gólgota).




É para Ti uma velha amiga, Senhor, esta Cruz com que te carregam os ombros. Há anos que a esperas, que aspiras ir ao seu encontro. Ela aí está, aperta-a nos braços. A bem dizer, porém, o que Tu amas não é o sofrimento. Ele repugna-te tanto como a nós, mais do que a nós. O que Tu amas são esses biliões de homens que, por meio dela, vais salvar, para os quais vais obter a grande alegria que não acaba. Para nós, confessamo-lo com grande vergonha, a cruz é uma visitante inoportuna. Comportamo-nos, muitas vezes, como inimigos da Tua Cruz, procurando eliminá-la das nossas vidas. Dá-nos a inteligência da cruz, dá-nos o amor da cruz, da Tua Cruz.




3. JESUS CAI PELA PRIMEIRA VEZ


pesad


A Tua Cruz é demasiado a, as Tuas forças estão esgotadas, cais no caminho...

Eis perante nós, o Todo-Poderoso transformado em todo-fraco. Obrigado Senhor pela Tua fraqueza, a "fraqueza de Deus" de que falava o teu apóstolo Paulo. Um Deus heróico que levasse a Sua cruz a cantar, ter-nos-ia intimidado e desencorajado. Mas vendo-te caído por terra, não hesitamos em aproximar-nos de Ti, com um coração confiante. Senhor, tem piedade de nós quando o coração acaba por nos faltar, quando nas horas de extremo abatimento a Tua Lei nos parece demasiado pesada, quando o nosso amor é demasiadamente fraco. Preserva-nos do desespero insidioso, que tenta invadir a nossa alma, quando não chegamos a amar-Te, tanto como desejávamos. E quando finalmente tivermos compreendido que não podemos salvar-nos por nós próprios, faz com que venhamos a procurar a nossa salvação junto do nosso Deus caído.






4. JESUS ENCONTRA SUA MÃE






Eis que avistas Tua Mãe. O seu olhar que fazia sorrir o Teu olhar de Menino, o seu rosto que durante trinta e três anos foi a alegria do teu coração. Maria acompanha-Te. Tu não duvidas da sua fidelidade, mas agrada-Te ler nos seus olhos que ela está lá de acordo contigo. Como sempre. Uma vez mais. De acordo até lá, até à Tua morte sobre a cruz dos malfeitores. Assim, o seu amor, bem longe de Te reter, mais Te impele ainda, para o sacrifício supremo. Que Maria esteja, igualmente, no nosso caminho, para nos ensinar que amar não é enternecer-se, mas entreajudar-se a caminhar até ao maior dom de si mesmo. Felizes de nós, quando nos encorajamos uns aos outros a crescer no amor, a levar a nossa cruz, a darmo-nos sempre cada vez melhor.






5. SIMÃO LEVA A CRUZ DE JESUS






(Quando o iam conduzindo, pegaram não mão de um certo Simão de Cirene que voltava de um dia de trabalho no campo, e carregaram-no com a cruz, para a levar atrás de Jesus, com receio que Jesus morresse de exaustão antes de ser crucificado).




Um homem regressa dos campos. Os soldados requisitam-no. Bem aspirava ele ao repouso, mas é constrangido a tomar a Tua Cruz. Não poderia o Omnipotente transportar a Sua Cruz até ao fim?... Não é a fraqueza, é o amor que Te leva a desejar a ajuda de Simão. Saber precisar daquele que amamos é um dos segredos do amor. E não é só de Simão que Tu tens necessidade, mas de cada um de nós. Não que a redenção esteja acima das Tuas forças, mas Tu amas-nos demais para não desejar associar-nos à grande tarefa que o Pai Te confiou.




Diz a História que os dois filhos de Simão, Alexandre e Rufo, se contavam, alguns anos mais tarde, entre os mais fiéis dos primeiros cristãos. O pai tinha levado a Tua Cruz; os filhos tinham recebido a abundância da Tua graça.






6 - UMA MULHER ESTENDE A JESUS UMA TOALHA






(Esta é a relíquia hoje conhecida como a "toalha" de Verónica, ou como é geralmente conhecida "A Verónica". Encontra-se numa catedral em Roma, sendo que o Santo Sudário, que é o lençol que envolveu Cristo onde ficou estampado o rosto, se encontra na catedral de Turim, e alguns pedaços têm sido objecto de análise cientifica já com outros métodos depois do carbono 14 que especificam melhor a época a que pertence).




Fica perturbada essa mulher, ao ver o Teu pobre rosto desfigurado, coberto de pó e de sangue. E enquanto pensamos, talvez, que uma mesma piedade nos teria lançado para Ti, passamos todos os dias ao Teu lado sem Te reconhecer. Faz com que o nosso olhar saiba ver para lá das aparências, e reconhecer, através da face do outro, a face do próprio Deus.






7 - JESUS CAI PELA SEGUNDA VEZ






Já não tens a Cruz sobre os ombros, mas o Teu esgotamento é tão grande que uma simples pedra, no chão, basta para Te fazer cair de novo. Embora saibamos que sucumbiste no caminho, recusamo-nos, constantemente, a aceitar as nossas limitações, as nossas fraquezas, os nossos insucessos. Sonhamos, ainda, ingenuamente, atingir a salvação pelas nossas próprias forças. É porque persiste ainda o nosso orgulho, que tantas vezes os nossos desfalecimentos nos provocam um tão amargo despeito. Ajuda-nos a saber aceitar-nos como somos, sem por isso renunciarmos a tornar-nos como queres. Livra-nos de confundir santidade com heroísmo. Ensina-nos que o maior amor não consiste necessariamente em fazer grandes façanhas por aquele que amamos, mas em consentir, humildemente, ser salvos por ele.






8 - JESUS FALA ÀS MULHERES DE JERUSALÉM






(Seguiam-no uma grande multidão de povo e umas mulheres que se lamentavam e choravam por Ele. Jesus voltou-se para elas e disse-lhes: "Não choreis por Mim; chorai antes por vós mesmas e por vossos filhos. Porque, se tratam assim a madeira verde, o que acontecerá à seca?" - retirado do Evangelho do apóstolo Lucas, que mais tarde escreveu a biografia de Jesus.)






À vista destas mulheres que choram, das crianças que levam nos braços, e que serão a geração da catástrofe, Tu tens piedade: anuncias-lhes os dias trágicos a fim de que se apressem a voltar-se para Deus. Deixas-lhes um misterioso aviso: "se se trata assim a madeira verde, o que acontecerá à seca?" A madeira verde é a madeira viva, cheia de seiva, que dá fruto: és Tu, Senhor! É preciso todavia que seja podada para que dê um fruto mais abundante. A madeira seca é a que se separa do tronco, que só é boa para o fogo. São os judeus incrédulos e os errantes por opção. Que nós não sejamos madeira seca. Livra-nos dessa fácil confiança na salvação, que bem poderia não passar de uma caricatura de esperança.






9 - JESUS CAI PELA TERCEIRA VEZ






Porque cais Tu, Senhor, mais uma vez? Será que a lição é de uma importância capital e que Tu nos achas obstinadamente insubmissos? Na verdade, melhor ainda do que realizar grandes coisas por Deus, é aceitar que o próprio Deus faça grandes coisas em nós e por nós. Um dia, a pequena escrava Blandina suportava a s torturas com tal coragem, que os seus companheiros julgavam ver nela o próprio Crucificado, sofredor e triunfante.








10 - JESUS É DESPOJADO DAS SUAS VESTES




(Os soldados romanos repartiram entre si as Suas vestes, tirando-as à sorte)




Tinhas proclamado: "Bem-aventurados os pobres". Nesta hora em que te arrancam a túnica, Tu és o grande Pobre, o Bem-aventurado que possui o Reino dos Céus. Ensina-nos o amor da pobreza. Não dessa falsa pobreza que é desprezo da criaturas, mas daquela de que nos deste o exemplo e que consiste num coração tão rico de amor, que nunca mais possa ser escravo de qualquer criatura; num coração tão forte que não se inquiete já com o dia seguinte, nem cobice as riquezas da terra; num coração generoso, pronto a dar.








11 - JESUS É PREGADO NA CRUZ






(Quando chegaram ao Lugar do calvário, crucificaram-n'O a Ele e aos malfeitores, um à direita e o outro à esquerda. Jesus disse "Perdoa-lhes, ó pai, porque não sabem o que fazem).






Doravante, dizia Paulo, não quero mais conhecer, não quero mais pregar senão Jesus, e Jesus Crucificado, escândalo para os Judeus e loucura para os pagãos. Escândalo também para Pedro quando no caminho tentava dissuadir-Te de morreres. E contudo é esse mesmo Pedro que, trinta anos mais tarde, em Roma, abraça a Cruz chorando de alegria, considerando-se indigno de morrer como Tu e por isso pediu para ser crucificado de pernas para o ar porque dizia que não era digno de morrer como Tu. Loucura também para nós, que passamos o nosso tempo a usar de rodeios com ela. Somos partidários de uma religião razoável, prudente, ponderada, equilibrada. O pior é que não é a verdadeira. Não é a nossa. É uma self made. Onde há amor há loucura. Onde não há loucura já não há amor. A estas pessoas razoáveis que somos ensina a, como Tu, como todos os teus mártires e todos os Teus discípulos, a amar o desapego, a conhecer a sabedoria da cruz que nós tentamos constantemente eliminar das nossas vidas. E como temos exemplos de pessoas em fases terminais que aprendem a escolher entre a sensatez do mundo e a loucura do amor; do Teu amor. Maria, roga por aqueles de entre nós que têm no seu coração uma ferida aberta: pela mulher que não pode ter filhos, pelo filho com pais desavindos, ou dos pais cujo filho morreu há algumas semanas ou há alguns anos - a mim foi a Minha Mãe e... - por aqueles a quem a vida foi roubada na doçura da sua juventude, por aqueles que perderem o seu companheiro de jornada...








12 - JESUS MORRE NA CRUZ






"Por volta da hora sexta, as trevas cobriram toda a terra, até à hora nona, por o sol se haver eclipsado. O véu do Templo rasgou-se ao meio, e Jesus exclamou dando um grande grito: "Pai, nas Tuas Mãos entrego o Meu espírito" (São Lucas)






Morrer foi o maior acto de amor da Tua vida, porque foi o maior acto de obediência. Porque não havemos de considerar hoje, de frente, essa morte que um dia, será nossa? Porque não daremos uma aceitação sem reservas a essa morte? E se no dia da nossa morte, já não tivermos bastante presença de espírito para Ta oferecer, lembra-Te, que a demos hoje, antecipadamente, com o fervor do nosso pobre amor.






13 - JESUS É COLOCADO NOS BRAÇOS DE SUA MÃE






"Junto da Cruz de Jesus estavam Sua Mãe, a irmã de Sua Mãe, Maria, mulher de Cléofas, e Maria de Magdala" descreve o apóstolo João, que escreveu igualmente a biografia de Jesus, os chamados evangelhos.






Há alguns anos, Maria repousava em seus braços uma criancinha: o Seu olhar sorria ao teu olhar; o coração batia-lhe forte no peito e o seu corpo estava quente de encontro ao teu. Hoje, o seu olhar extinguiu-se. O Seu coração deixou de bater. O Seu corpo já está frio. Maria, aquele que tens nas tuas mãos não é como um amor hesitante, resignado que tu apresentas. Uma alegria misteriosa surge do mais profundo da tua dor, aquela de que Jesus havia falado: "Há mais alegria em dar do que em receber". Que na ultima hora sejam as tuas mãos que nos apresentem a Deus.






14 - JESUS É COLOCADO NO TÚMULO






"José de Arimateia e Nicodemos tomaram o Corpo de Jesus e envolveram-n'O em ligaduras, juntamente com perfumes, segundo a maneira de sepultar entre os Judeus. No lugar em que Ele tinha sido crucificado havia um horto e, no horto, um túmulo novo. Por causa da Preparação dos Judeus, como o túmulo estava perto, aí puseram Jesus" (Do evangelho de João).




Tu disseste, Senhor, que se o grão de trigo se recusa à morte, fica só e estéril: mas dá um fruto abundante se consente em morrer na terra. Vinte e um séculos passaram. A confirmação das Tuas palavras está perante nós: sobre o Teu túmulo germinou o Povo imenso dos Filhos de Deus a que chamamos Igreja. Cristo vence. Cristo reina. Cristo impera. Ensina a todos nós que a morte não é só a morte do último dia, mas a morte do quotidiano. É preciso que o homem velho que há em nos morra para que nasça o homem novo.



É Hora de Noa na Terra!


...Faço silêncio... »




© Paul Gauguin, Christ Jaune, 1889

terça-feira, 7 de abril de 2009

Papiações

Estando esta noite no costumeiro zapping, deparei-me com um documentário na 2: a começar: Cochim – Uma terra distante, de Fernando Matos Silva. Eu, fascinado desde sempre pela Índia (Deus saberá de onde me vem este interesse, este gosto, este fascínio pela terra de destino das caravelas e das naus quinhentistas!) fiquei desde logo preso ao ecrã! E foi com deleite e profunda comoção que assisti, de uma ponta à outra, eu diria que até sem pestanejar… perfeitamente inebriado, como miúdo que vai ao circo pela primeira vez. Segundo o sítio da 2: este é



"Um documentário organizado à volta da divulgação da herança cultural indo-portuguesa, com imagens comentadas dos exemplos mais marcantes da arquitectura civil e religiosa e dos núcleos habitacionais marcados pela nossa construção tradicional.
A memória portuguesa patente na vida activa diária, comercial e artística de Cochim, hoje capital do estado de Kerala e das circunvizinhas Cranganor, Calecute, Travancore e Coulão.
A indiscutível e reconhecida influência das comunidades católicas indo-portuguesas e das suas antecessoras Nestorianas ou Santomenses em toda a região.
"




Mas tudo fica por dizer nesta descrição, mero rol do alinhamento das imagens. Tudo fica por dizer!...




Apontando a objectiva (principalmente) à comunidade católica (em parte luso-descendente) de Forte Cochim (cidade que fez parte do Vice-Reino Português da Índia entre 1503 e 1663), este documentário confronta-nos com o nosso passado, com o que fomos e o que queremos ser, com o que seremos, se quisermos. É um ensaio sobre uma maneira de ser português, e isso, parecendo pouco, é muito! A dita comunidade ostenta com orgulho, ainda hoje – volvidos que estão quase 350 anos da conquista holandesa -, os nomes e a cultura portuguesa. No seu cemitério resistem os nomes familiares, os nomes dos nossos antepassados e dos nossos descendentes (Sousa, Pereira, Martins, Lopes), com a ligeiríssima nuance de estarem grafados segundo a norma arcaica do século XVII (Anton, Souza, etc). E isto é um assombro! No seu falar escutamos também um português tão familiar como o seria, se o pudéssemos escutar com vida, o português dos Restauradores de 1640; mais: ainda hoje, nos momentos de celebração, nos momentos solenes, cantam em português, coisas que presumo, muitos já nem saberão o que querem inteiramente significar. Aliás, um dos entrevistados, um orgulhoso "português" de Cochim, considera-nos um dos povos mais corajosos da terra, um dos povos mais cultos, um dos povos mais empreendedores; comparando-nos com os holandeses e ingleses que se seguiram por aquelas paragens, ele fez um apontamento curioso que acho que diz tudo: dizia ele que esses outros povos europeus tinham dominado e governando aquelas terras ("they ruled"), mas que os portugueses, chegados em primeiro lugar, não procuraram impor-se, mas sim, integrar-se; interessados mais no comércio do que no domínio, deixaram o governo das populações entregue aos seus líderes tradicionais, dedicando-se apenas à sua actividade comercial e missionária. Como que resumindo a ideia, atalhava com uma frase quase estranha para nós hoje: "- They (os portugueses) were gentlemans! And a very brave people!"). De resto, o avô deste (agora, também) ancião tinha por hábito, após as orações em inglês, rezar o Rosário em português. E isto porquê? Porque o Inglês era uma língua protestante, logo, pouco idónea para um verdadeiro português católico orar!




Esta dimensão católica é, também, das mais impressionantes neste documentário. Não só pela arte sacra profundamente marcada pela influência portuguesa (a maior parte das igrejas datam do período português), mas sobretudo pelos costumes. Um dos quais, uma procissão do Senhor Morto (típica desta época pascal) arrepiou-me, não só no que de sentimento religioso transparecia, como pelo anacronismo evidente: aquela era uma Procissão do Senhor Morto igual às que percorriam as ruas da pátria europeia distante nos séculos XVII/XVIII. Mais um assombro! Assistir a uma procissão, com lanternins barrocos, com um Cristo de tamanho humano deitado no sepulcro, assistir ao velório posterior, assistir à maneira carinhosa como os Seus pés são beijados, assistir à renovação dos colares de flores que ornamentam a cabeça do Morto-Querido, é abrir uma janela para o nosso passado, para o que também fomos e deixámos de ser pelo caminho. E as orações e cânticos, tudo em português, numa papiação a fazer lembrar o papiar cristan de Malaca, ou a papiação di Macau (uma espécie de português arcaico cristalizado, um crioulo antigo, que ocorre em muitos dos lugares onde a presença portuguesa se fez sentir, com especial resistência nos territórios hoje pertencentes à União Indiana e à Indonésia) … Um assombro, um assombro, um assombro absoluto que me levou às lágrimas. Mas não num choro nostálgico: foi mais um choro pelo presente, pelo presente que tão pouco honra o nosso passado, que tão pouco nos lembra que isto também é Portugal. Mesmo que esteja lá longe, mesmo que esteja separado pelos séculos: ainda é, também é, Portugal. Ainda é, também é, ser português!





E depois as imensas questões que tudo isto levanta na identidade. A nossa e a deles. A nossa e a deles, dos outros, dos que rezam noutras línguas. A voz de Hannah Arendt a ecoar por dentro - "Was bleibt? Es bleibt die Muttersprache" – a ecoar por dentro como a dessa língua materna
que resiste, que resiste a tudo, que resiste à própria loucura, que resiste por dentro da poesia, que resiste por dentro na poesia, nos poemas que sabemos de cor. Tal como as orações. A forma como a nossa identidade consegue resistir a tudo isto, a toda esta loucura: algures no mundo, do outro lado do mundo, separados pelos mares e pelos séculos, outros, outros como nós (serão alguns de nós, também), são, sentem-se, vivem-se, vêem-se como portugueses. Como cristãos-católicos-portugueses. Apesar das eras e das políticas, apesar das perseguições e das mentiras, apesar do mundo… Cristãos. Católicos. Portugueses. Em Cochim. E com imenso orgulho e cada uma dessas identidades (serão mais do que uma?). Com um imenso orgulho em cantarem na língua dos seus antepassados, na língua dos fiéis: a Cristo, à religião, à pátria, à tradição, aos antepassados, ao sangue e à cultura. Com um imenso orgulho da sua identidade, da sua diferença em face dos outros: os holandeses, os ingleses, os protestantes, os indianos…




E agora é outro fantasma louco que me assola: Fernando Pessoa e o seu extraordinário aforismo que tão bem captou uma grande parte do ser português, do ir sendo português: "Minha patria é a lingua portuguesa". Ouçamo-lo assim mesmo, sem acordo, sem sossego, nesta que é já uma papiação doutro tempo, uma papiação a resistir nos corredores do tempo. Ouçamo-lo, e com os nossos de Cochim cantemos.


Não chóro por nada que a vida traga ou leve. Há porém paginas de prosa me teem feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noute em que, ainda creança, li pela primeira vez numa selecta, o passo celebre de Vieira sobre o Rei Salomão, "Fabricou Salomão um palacio..." E fui lendo, até ao fim, tremulo, confuso; depois rompi em lagrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquelle movimento hieratico da nossa clara lingua majestosa, aquelle exprimir das idéas nas palavras inevitaveis, correr de agua porque ha declive, aquelle assombro vocalico em que os sons são cores ideaes — tudo isso me toldou de instincto como uma grande emoção politica. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda chóro. Não é — não — a saudade da infancia, de que não tenho saudades: é a saudade da emoção d´aquelle momento, a magua de não poder já ler pela primeira vez aquella grande certeza symphonica.


Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.


Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-m´a do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.




©St. Sebastian Church, Thoppumpady (Kerala) a sua beleza e o seu sincretismo.


domingo, 5 de abril de 2009

Cliché

Dois programas de televisão provocaram-me hoje uma incrível sensação de fastio. Foram, ambos, mais do mesmo, e mais do mesmo, mesmo! Falo do Conta-me Como Foi na RTP1 e do Câmara Clara na 2:.

O Conta-me Como Foi fez um episódio especial no qual a família Lopes visitou a aldeia onde têm as suas raízes. Como sempre nesta série, gosto da recriação de um tempo no qual não vivi, mas do qual conheci ainda as franjas. Gosto da recriação dos objectos, das roupas (hoje até as roupas dos "aldeões" falharam redondamente), dos pequenos nadas do quotidiano, dos costumes e dos hábitos das gerações que nos precederam. Como sempre (infelizmente, diga-se de passagem), acho a abordagem política tonta, desfasada, tendenciosa e infiel à realidade. Aliás, quem vir a série dificilmente compreende como se aguentou a mais longa ditadura do ocidente europeu durante tanto tempo, quando (supostamente) não havia praticamente ninguém a defendê-la. Com a (des)honrosa excepção da atroz figura do "Engenheiro" que julgo pretender caracterizar uma classe média-alta apoiante do regime. Fica-se pela pretensão: a tonteira com que a personagem foi pensada (e todo o mundo em que se move) tem mais semelhanças com a classe média aburguesada e "pato-bravia" que tomou conta do país nos tempos imediatos à queda do regime (e que muito prosperou com essa mesma queda), do que com as classes médias antigas-apoiantes do Estado Novo ("antigas-apoiantes" porque em Portugal, todos são pela"situação" num dia, e no seguinte já todos são pela "revolução", coisa que se repete e verifica em todas as ditas "revoluções", pelo menos desde 1910, embora desconfie que o mal e a cobardia já vêm de longe!). Alicerçada na visão marxista do mundo (a suposta luta de classes como motor do mundo, os patrões sempre vistos como bichos piores do que o Adamastor, a figura do assalariado-vítima, e outros dislates e parvoíces que tais – e o que impressiona é como isso fez história no mundo inteiro! E milhões de vítimas.) a série falha naquilo que poderia ser uma discussão (mais de "serviço público" do que o aborrecido-mas-alguém-ainda-vê-aquilo-? Prós e Contras) interessante, educativa, pedagógica e reconciliadora. Reconciliadora com a nossa história, volvidos que estão quase 35 anos do 25 de Abril de 1974. Uma geração, portanto. Nada disso! Perdendo-se por esse lado, sobra a recriação folclórica dos usos e costumes, da moda e da decoração, dos anúncios da televisão (embora quem veja aquilo não tenha bem noção que a Televisão era apenas "um canal e meio", sem programação contínua), da lembrança de alguns acontecimentos marcantes da época, e dalguma diferença nos modos de educação. É pouco, mas é o que temos. (não sei se o problema estará tão puramente no facto da versão portuguesa ser adaptada da versão espanhola e por lá estar na moda a revisão histórica, se o problema é mesmo de ser escrita por gente que não faz a menor ideia de como as coisas se passaram).

Ora foi aí, exactamente, que o episódio de hoje me deixou de boca aberta. A falha foi por demais evidente. Das roupas à aldeia totalmente despovoada a que assistimos (coisa que em 1970 é totalmente impossível, apesar do surto emigratório dos anos 60. Aliás, nem em 1980 as coisas eram assim!), foi um descalabro de disparates. E eu, que costumo dizer que um dos piores males deste país é não ter elites regionais dignas desse nome, restando apenas as elites do eixo Liceu Passos Manuel- Liceu Camões cujo conhecimento do país é nulo, vi a minha anátema retratada com todas as cores no ecrã do televisor. Quem escreveu aquilo não faz ideia 1) do que é uma aldeia portuguesa, 2) do que é uma aldeia portuguesa em 1970, 3) do que é uma aldeia portuguesa em 1970 em Trás-os-Montes! E, julgando eu que a minha incredulidade se devia ao meu já famoso mau feitio, eis que a minha madrinha entra na sala, olha para aquilo e diz-me: "- Mas eles julgam que toda a gente se vestia de preto nas aldeias?" E eu, ainda tolhido pela incredulidade só lhe pude responder: "- Pois, parece que sim…"

Ora vamos lá a pôr um bocadinho de siso nas coisas. A) As aldeias portuguesas ainda não estavam, em 1970, como estão hoje: eram habitadas, não só pelos velhos como (ainda) por muita gente nova; ora isto é facilmente perceptível se nos lembrarmos da percentagem da população cuja actividade principal ainda era a agricultura e extrapolarmos os resultados para a população envolvida, ou seja, até matematicamente é verificável! B) Os aldeões não andavam todos vestidos de preto: isso era habitualíssimo (e mal visto se assim não fosse) nas viúvas, naqueles que estivessem em período de luto, ou nas mulheres solteiras mais beatas, se bem que até estas usavam outras cores, discretas, mas outras cores. C) As pessoas não saíam (não saem) da missa e desaparecem da igreja; não: o pós-missa é um ritual tão ou mais sacramentado do que a Eucaristia ela mesma! E para isso não é preciso ir a 1970: basta ver hoje como é. D) As crianças das aldeias não andavam assim vestidas (tomara elas!), nem sequer quando eu andei na escola, numa aldeia, no final da década de 80! É triste, mas é verdade! Não vi nenhuma em actividades agrícolas (as brincadeiras eram, normalmente, nos intervalos das mesmas).E) Duvido que os aldeões precisassem de conselhos amorosos do "D. Juan Carlitos"… Essa visão do mundo rural repleto de atrasadinhos e "atadinhos-quase-bestas" é um insulto e é não conhecerem a cepa rural portuguesa. De todo! E se fosse ao contrário não me espantaria… F) A visão "nova-rica" de uma rapariga citadina que não sabe lavar à mão só pode ser, em 1970, uma liberdade poética e ficcional. À mão lavava-se (lava-se) em qualquer lugar, fosse no rio, num lavadouro público (como foi o caso na série), num tanque numa qualquer "marquise" de subúrbio (que os "Lopes" até têm e tudo como vimos em episódios passados), ou num alguidar na banheira; achar que não é, isso sim, não fazer ideia do que seja… mas entretanto correram 40 anos de água por debaixo das pontes. G) Não havia necessidade de transformar a alusão às "disputas da água" (é verdade, famosas e usuais ao tempo, e pelo que oiço dizer, ainda hoje) em mais um episódio maniqueísta da luta de classes: as ditas aconteciam transversalmente e, corrijam-me se estiver errado, aconteciam mais entre as classes (ditas) populares, e entre familiares, por um simples motivo: as propriedades serem mais pequenas, mais concentradas e o recurso a poços ser, por isso mesmo, mais escasso. H) Quer-me parecer (e quem conhecer melhor as tradições nortenhas poderá esclarecer isso) que nos casos em que se "aguardava" uma morte, os vizinhos e familiares não se juntavam (simplesmente) em casa do quase-defunto: juntavam-se em oração (tenho ideia que o Rosário seria o mais comum), pedindo ao Céu para que a alma do ente querido entrasse com todas as honras no Reino dos Céus. E após o último suspiro as rezas continuavam durante o velório, havendo "carpideiras" e tudo! (por cá, em 1986 ainda havia o recurso a essas "profissionais da dor").

Nota positiva apenas para um diálogo tido junto ao lavadouro: o diálogo sobre a vida rural/vida na cidade. O resto: pura ficção e mais do mesmo!



Posto isto, transitei para a 2: para o Câmara Clara onde se debatia a Guerra Civil de Espanha 1936-1939. Ou melhor: debater é um eufemismo que utilizo para (mais) um programa de propaganda. Para ter havido ali algum debate teria de ter havido – pelo menos – duas posições antagónicas sobre o assunto, coisa que não se verificou. Aliás, esta conversa sobre a Guerra Civil de Espanha é elucidativa para trazer aos olhos e aos ouvidos uma coisa que me parece extraordinária: esta é das raras guerras cuja história não é escrita pelos vencedores, mas pelos vencidos. E isso, sendo raríssimo na história mundial, é assinalável. O resto foi mais do mesmo. Com uma nuance: um dos intervenientes defendeu a tese de que "até houve algumas atrocidades do lado republicano" (coisa também assinalável por ser comummente omitida e convenientemente "esquecida"), para logo atalhar que essas barbaridades e esses crimes foram perpetrados pelos revolucionários mais esquerdistas. Ou seja: ao que parece o lado republicano é todo impoluto e virginal, à excepção de uma horda de gente que, apesar de constituir uma boa parte desse campo, "não era desse campo". Eram, se quisermos, uma terceira parte envolvida na guerra, a qual, ao que parece, se travou entre Anjinhos (os Republicanos bons), Maus (os Republicanos-que-não-eram-bem-Republicanos-porque-eram-maus) e Demónios (o Bloco Nacionalista). É obra!

E eu diria que é não perceber, ou não querer perceber o que é uma guerra, o que acontece durante uma guerra, e pior, o que é e o que acontece durante uma guerra civil (como é o caso da Espanhola). Pior: o que é e o que acontece durante uma guerra civil que é um ensaio para outra(s) transnacionais por vir. Mais ainda: é não perceber, ainda hoje, o que levou a Espanha à insurreição generalizada e à guerra civil. E isso, não podendo ser burrice colectiva, só pode ser uma coisa: má vontade, falta de honestidade intelectual e, mais prosaicamente, sacanice! A Espanha viveu uma guerra civil feroz, sangrenta e cruel (como todas, de resto). Nessa guerra cometeram-se atrocidades (como em todas) e crimes variados por ambos os lados da contenda (como em todas). Alguns desses crimes, sendo explicáveis, não são justificáveis em tempos de guerra (como em todas). Esses crimes deixaram marcas profundas (como em todas). Há que fazer a história para memória e aprendizagem futura (como em todas). Essa guerra teve intervenção estrangeira (numas mais do que noutras, mas, como em todas). A partir daqui, investiguem-se, estudem-se, discutam-se e pensem-se as singularidades desta guerra. Pense-se porque é que o lado, supostamente mais forte, perdeu. Pense-se porque é que uma insurreição no ultramar foi seguida por quase todo o território da metrópole. Pense-se porque é que a Monarquia havia caído ainda não meia dúzia de anos antes. Pense-se qual era o ambiente vivido na sociedade. Pense-se. Pense-se. Pense-se. E tenho a certeza que a conversa será ligeiramente diferente… Que é como quem diz, menos do mesmo!



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