domingo, 7 de setembro de 2008

III - Das asas, ou Fala de Damabiah a Iah_Hel

Pediste-me asas_ dei-te amor.

Querias que eu te desse asas - querias voar - querias soltar amarras rumando ao azul. Querias ser como os raios de sol que nos lambem a pele nas tardes frias de Outono. Querias imitar os pássaros, ser gaivota em mar de calmaria, arara colorida sobre a terra verde, corvo negro e reluzente sobre o fogo. Querias conhecer as nuvens, alimentar-te delas, como do algodão-doce-rosa das feiras onde adoras o trote dos cavalos-alados dos carroceis. Querias ser estrela, anjo ungido, mas não tinhas asas. Dizias tê-las perdido quando caíste do céu e queria-las de volta. Querias voar. Sentias-lhe a falta. Sonhavas com isso. Falavas do frio no estômago, do orvalho na pele, do vento no cabelo, da liberdade sonhada, do riso prolongado, do desejo da vertigem... Querias asas e pediste-mas

- eu, só amor te dei,

meu amor,

e tu, que querias asas, partiste a correr o mundo. Traçaste um caminho secreto nas estrelas, arrancaste as pedras do trilho para que não te seguisse, disfarçaste a tua ausência com véus e engodos e salas de espelhos – tantas vezes me (re)enviaste para falsas moradas, tantas vezes disseminaste falsas pistas... Querias asas e foste à procura de quem te as desse. Querias voar...

E partiste a correr o mundo, buscando em todos os cantos verde-musgo, levantando todas as pedras e catando de cócoras com as mãos mergulhadas na argila dourada. Perguntaste a todos os oráculos, tomaste todas as poções e mistelas e xaropes de cores estranhas e sabores extravagantes: querias asas e tudo farias para as encontrar! Para as resgatar. Mas nem um sinal. Para te indicar o caminho, nem uma pena, uma pista, um vestígio, nem um rasto do pó das estrelas – o rasto que as asas costumam deixar... Nada. Só o mundinho agarrado ao chão, só as árvores, e as gentes, e os carros, e as casas, e o pó, e os balões a morrerem no céu, e mais árvores, e mais gentes, e mais carros, e mais casas, e mais pó, e os pássaros – que inveja tens deles

minha ternura


- esvoaçando sobre as cabeças, parecendo troçar de ti, “o sem asas”. Cansado da busca, com os pés doridos, o coração crivado de alfinetes, a alma toda esfarrapada, sentaste-te numa pedra. Por cima do ombro vislumbraste todo um rastro de amores cobertos de pó, estátuas de sal a perder de vista, a terra toda queimada, negra, seca e estéril – nem uma asa. E choraste. Sem lágrimas choraste. Com a boca a saber a sal e a poeira, choraste. Convulsivamente. Onde estavam as tuas asas, gritaste ao céu moreno do fim da tarde, a revolta toda nas mãos crispadas, o suor a correr-te na face ( ou seriam lágrimas?), o corpo todo torcido como aquelas árvores que ficam rasteiras e doridas, tisnadas pelo sol, abraçadas pelo sal, a olhar os pássaros nas negras arribas batidas pelo mar.


Pediste-me asas_ dei-te amor. E tu, que querias voar, partiste à procura de braços alados, asas de anjo, hélices e catapultas, tudo o que te lançasse no ar e te fizesse voar. Pois não sabias tu que eu te daria mil um milhão um bilião de pares de asas - douradas, verdes, azuis, laranja, prateadas, carmim, ou simplesmente brancas (as de um anjo devem ser sempre brancas, debruadas a ouro e baunilha) – se fosse esse o segredo para voares? Se a tua alegria, a tua felicidade disso dependesse, não exterminaria eu todas as aves para lhes arrancar as asas para que fossem todas tuas e só tu ocupasses os céus? Não te levaria eu às costas se só assim pudesses voar?


Ora, não me ensinaste tu,

minha alegria,


que para voar, basta amar, não são precisas asas? Que um anjo não deixa de o ser só porque lhas cortaram (ou roubaram)? Não me ensinaste tu que as asas são a mecânica do voar? Não sabes tu que as asas derretem junto do sol e por isso os pássaros voam baixinho, rasando os teus cabelos luzentes, bêbados, desejosos da luz que irradias e que aquece as suas pobres e fracas asas de penas e cera e cartão e aguarelas? Só vestidos da tua luz doirada são belos. Só perto de ti têm cor. Só à tua beira conseguem ouvir o seu canto - o lamento de terem asas e não saberem voar.


Mas não me ensinaste tu,


meu milagre,


que para voar basta acreditar, basta querer, basta não temer saber a_mar,


meu eterno eterno e_terno amor,


e nunca temer a distância, a altura, a queda, as feridas, as cicatrizes, as vertigens da terra , do chão, do mundinho : ele está sempre lá para nos agarrar quando for necessário. Basta não temer ir, sem rumo ou destino ou direcção, mas ir sem parar, sem pensar sequer, sem pernas trementes, sem olhares de relance, sem asas que pesem. Basta não temer a entrega, o mergulho de cabeça, o salto sem rede, sem cama elástica, sem colchão ou caixa de penas. Basta não temer a subida e acreditar no voo, acreditar nos braços do vento, acreditar nas mãos da maresia, acreditar no azul-azul mais azul-azul do que o azul. Acreditar no ar. Acreditar que amar é a palavra-passe de voar. Acreditar que 2 almas + amor = voar. Acreditar que só os que amamos na pele e no estômago, só aqueles que se inscrevem em nós como tatuagens, chegam aonde nunca ninguém chegou, descobrem novos mundos cá dentro, despem-nos da carne e tocam-nos a alma, o nosso segredo, e ensinam-nos a brincar e a rir e a sonhar. E a sorrir enquanto dormimos. E a voar...


Eis a senha segredada pelos búzios! A verdade escrita na face negra da lua. Basta crer! Por isso nos sonhos e de forma tão real,


minha benção,


tu voas com tanto ardor, com tanta alegria, mais veloz que o vento, mais brilhante que a luz. Por isso não te dei asas


meu amor de sempre


- nós nunca delas precisámos. Sempre fomos o mais belo voo!


P.S. Quando finalmente largares o chão voa até a boca te saber a_mar – lá me encontrarás com o mais belo par de asas que já algum dia pudeste sonhar.


João Forji

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