domingo, 7 de setembro de 2008

II - Esquinas

Há horas em que julgo nunca ter saído daquela esquina. Lá estou eu, a ver-te-partir, correndo sobre a passadeira húmida, fugindo da chuva que começava a cair. Pessoas apressadas, autocarros abarrotados, carros deslizantes, crianças berrantes, mais pessoas apressadas, e carros, e autocarros, e mais crianças, e reflexos no chão já bastante molhado, e eu ali, parado ali, a ver-te-partir, aconchegando com os olhos cada um dos teus passos rápidos e decididos. Ali imóvel e absorto à chuva, bebendo em grandes tragos cada um dos teus gestos, ali, a ver-te-partir naquele autocarro – terá sido na mesma esquina? – naquela tarde quente e luminosa, os dedos a saberem a sal, a boca seca, entreaberta, tu a acenares, a mão suspensa num raio de luz, os dedos imóveis, e os meus a saberem a sal, a ver-te-partir, sem remorsos, sem hesitações, sem lamentos, os meus olhos agrafados aos teus agrafados aos meus. Eu naquela esquina aparvalhado, extasiado, aturdido, de chapéu a pingar a ver-te correr e dobrar a esquina – outra, ou a mesma? – a chuva a cair sobre mim que te vejo partir, dentro de mim que te vejo partir (“- Não te molhes, meu amor!”), naquela esquina ou na outra – haverão duas ou mais? Meus olhos a ver-te-partir, sem pestanejar, os carros a apitarem naquela tarde ensolarada (“- Boa viagem, meu amor!”), os nossos olhos agarrados num abraço, sem pestanejar, naquela hora do fim da tarde, os gestos todos de mármore, o mundo suspenso, o tempo parado...


Há horas em que sou o cais a ver-te-partir para o outro lado do mar, ufano e majestoso como um transatlântico em viagem inaugural vestido de luz e festa, e eu quedo e mudo, batido pelas vagas soltas do teu sulco nas águas, resplandecente sobre a luz da tarde, a imensa bruma a cobrir a terra verde, um cheiro a algas e sal que enjoa, e tu a partires, âncora içada, velas alvas a bailar ao vento, o oceano todo de veludo e prata.


Há horas em que sou um lenço branco a flutuar na brisa, a maresia húmida colada à pele, a gaivota que te acena no requebro de uma onda, o vento que sopra as tuas velas, a mão que separa e acalma as águas à tua passagem, a chuva que te beija o rosto, o sol que te lambe.


A ver-te-partir parto sempre contigo, meu amor. E deixo-me ali naquela esquina, imóvel, os olhos marejados de sal, naquela esquina daquele cais ( muitas esquinas nos contam, meu amor ), naquela beira-mar deserta, a ver-nos-partir. Ao ver-te-partir parto sempre contigo, meu amor. E nunca mais volto. Nada há a que voltar.


(Tudo o que amo parte contigo, meu amor. Tudo o que amo parte contigo, meu amor. Tudo o que amo parte contigo, meu amor. Tudo o que amo parte contigo, meu amor. Tudo o que amo parte contigo, meu amor. Tudo o que amo parte contigo, meu amor. Tudo o que amo parte contigo, meu amor.)


Tudo o que amo parte contigo, meu amor, naquelas horas em que fico a ver-te-partir. Tudo. E se um dia quisesse(s) voltar àquelas esquinas – haverão duas ou mais? - às nossas esquinas, nada mais lá seria encontrado do que uma esquina igual a tantas outras, um cais todo vazio, as pedras todas negras da memória, um marejar longínquo de ossos, sem carne e sem músculos e sem pele e sem cheiro. Um cais todo oco, um céu sem asas, um mar sem ondas, um oceano sem azul. Porque o que nunca te disse


- e há horas em que te digo, baixinho, às vezes sem voz, em surdina, ao teu ouvido enquanto dormes, enquanto me vejo a ver-te-partir nos sonhos –


é que sempre que te vi partir, sempre que te vejo partir, parto eu também, zarpo eu de mim, o olhar preso ao teu como naquela esquina, um aceno imóvel, sem começo remorsos ou lágrimas. Amar_ro-me a ti. Amarro-me a ti. Amarro-me a ti e vou. Sem destino rota carta de mareação ou bússola. Vou agarrado a ti, vou, a ver-te-partir, vou, com os olhos lavados no azul, as mãos douradas apertadas com tanta força que fazem doer, as pernas entrelaçadas em nós de marinheiro, o coração todo cosido ao teu com linha grossa escarlate, a pele toda bordada a madrepérola e corais. Vou e sigo-te a ver-te-partir. Vou contigo. Tudo o que amo parte contigo, meu amor.


E assim te amo. Assim te embrulho em papeis coloridos e purpurinas e fogos e fitas e sedas e incensos e silêncios. Assim te guardo. Em mim. Assim te guardo enquanto dormes, vigilante enquanto sonhas, o corpo todo embrulhado no teu embrulhado no teu - a ver-te-dormir. Assim te amo. Assim te conto o meu amor – meu amor – sem palavras, diariamente, a toda a hora de todas as horas,


“- Boa viagem, meu amor!


os silêncios todos cheios de ti. Assim te amo. Assim te transporto em mim. Assim estou sempre contigo. Sempre. E é tanto tempo que até eriça os cabelos e arrepia a pele e gela as mãos e seca a boca e aperta o ventre e dispara o coração. Sempre. Sem começo nem fim (haverão duas ou mais esquinas, um mito iniciático que possamos cultivar?), sem tempo com as costas todas carregadas de horas. Das horas, as nossas, meu amor! Assim te amo e te conto e te guardo. Meu amor... (sem ponto de exclamação ou maiúsculas ou adjectivos)


João Forji

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