No mundo da minha infância, nesse mundo estranho e distante em que vivi, o mundo dos joelhos esfolados e da fruta comida das árvores, uma coisa me causava maravilha: a chegada dos ciganos.
Todos os anos, mais do que uma vez por ano, mas uma delas parece-me que por esta altura em que a terra cheira a mosto, antes das primeiras chuvadas a sério, uma família de ciganos passava na minha aldeia e acampava nas ainda-não-ruínas da velha loja da quinta onde quase nasci. Era uma coisa estranha, num mundo que me parece cada vez mais distante e intrigante. Aquela família de nómadas aparecia quase sempre na mesma altura e pedia para ficar instalada – talvez se dissesse “acampada” – lá na quinta. E isso era-lhe permitido, desde que não causasse qualquer estrago lá ou na vizinhança (ou pelo menos qualquer estrago de maior, porque uma ou outra galinha acabava sempre por desaparecer, assim como as carpas que o meu Tio criara com tanto esmero no velho tanque da rega do milho acabaram todas fritas, numa bela manhã de sol). Com os anos a confiança foi crescendo e já se conheciam os filhos do velho patriarca, os netos, e os cães que traziam consigo e consigo desapareciam como se fossem eles a apagar o seu rastro no mundo. Era algo que me parecia quase mágico: num dia adormecia a sonhar com a próxima aventura “no meu castelo” e, pela manhã, mal saía à porta lá estavam eles, de casa às costas, como se sempre ali tivessem estado, e apenas uma ou duas vezes por ano a cortina desaparecesse e nos permitisse vislumbrar o outro lado do mundo.
Claro que o meu contacto com essas estranhas criaturas era reduzido ou quase inexistente. Em casa era proibido de me aproximar, não fosse o diabo tecê-las, ou uma qualquer doença trazida pela não vacinação me atacar. A sua não-rastreabilidade assustava as minhas cuidadosas progenitoras. Mas isso só aumentava a minha curiosidade. Lembro-me que inventava mil e um estratagemas para me aproximar, para arranjar um ponto de observação eficaz de onde, sem ser notado, pudesse absorver-lhes a alma, descobrir-lhes o segredo, seguir-lhes o rastro. E quando os seus olhares me descobriam, lá me escapava eu, vermelho, a rebentar de vergonha de ter sido descoberto.
Nesse mundo estranho e encantado em que vivi, os ciganos eram um desarranjo do normal, eram uma excepção, uma diferença infinita com a vida. E lá ficava eu a observá-los, achando que estava a empreender a mais arriscada das empresas. Tudo me atraía: as vestes negras, os longos cabelos das mulheres, as barbas e olhar desafiador dos homens, os banhos ao ar livre dos miúdos… Para mim era algo semelhante a um contacto com povos do outro lado da terra. Até a língua me parecia diferente! E ao anoitecer encantava-me a fogueira a crepitar na noite, os vultos, as músicas, os ruídos do burburinho ali ao pé. E um dia, tão magicamente como haviam chegado, partiam quase sem darmos por isso, deixando para trás um pequeno rasto de lixo que eu cuidadosamente investigava. Demoravam um ano (às vezes até menos) e depois lá regressavam a pedir um lugar.
Foi assim até que um dia, mais tarde, as regras foram quebradas, e os cães latiram toda a noite, tristes, angustiados por pressentirem a chegada do fim de um tempo. Um tempo que hoje me parece genésico (para mim, pessoalmente, era-o), que terminou com a partida definitiva dos ciganos, daquela família agora sem patriarca, sem o rosto da confiança, que durante tantos anos havia estabelecido os mais invulgares laços de respeito mútuo e amizade. Mas nem aí, nem no momento da traição e castigo se pode ter falado de falta de respeito: partiram numa tarde chuvosa, cientes de haverem quebrado o contrato que os uniu durante décadas à nossa casa. E lá foram. Sem rastro. Sem volta.
Hoje acho engraçado que, num mundo que muitos vêem e querem fazer ver como arcaico, limitador e opressor, houvesse este e muitos outros espaços de liberdade e respeito. De aceitação do outro, como agora está em moda dizer-se. Nesse mundo distante e cada vez mais mágico, os ciganos eram vistos como gente, gente diferente é certo e como não poderia deixar de ser, mas gente que, cumprindo com a sua palavra, levando uma vida honesta, podia acampar ao lado da nossa casa e viver lado a lado. Sem bairros sociais, sem descriminações positivas, sem paternalismos socialistas, sem ficções sociais. Gente com direitos e deveres; gente a quem era exigido que, podendo levar a sua vida como quisesse, não interrompesse o correr da vida dos outros. Gente que era respeitada, contando que também respeitasse. Como os tempos mudaram, Deus meu!
Hoje, ao ver um grupo cigano animadamente acampado numa esplanada no seu lado da cidade, arderam-me outra vez as feridas dos joelhos, e voltei a olhá-los com fascínio, como quando o tempo era de comer os dióspiros debaixo da árvore, limpar-me às folhas, e correr a construir um castelo nas toiças de giesta.
Todos os anos, mais do que uma vez por ano, mas uma delas parece-me que por esta altura em que a terra cheira a mosto, antes das primeiras chuvadas a sério, uma família de ciganos passava na minha aldeia e acampava nas ainda-não-ruínas da velha loja da quinta onde quase nasci. Era uma coisa estranha, num mundo que me parece cada vez mais distante e intrigante. Aquela família de nómadas aparecia quase sempre na mesma altura e pedia para ficar instalada – talvez se dissesse “acampada” – lá na quinta. E isso era-lhe permitido, desde que não causasse qualquer estrago lá ou na vizinhança (ou pelo menos qualquer estrago de maior, porque uma ou outra galinha acabava sempre por desaparecer, assim como as carpas que o meu Tio criara com tanto esmero no velho tanque da rega do milho acabaram todas fritas, numa bela manhã de sol). Com os anos a confiança foi crescendo e já se conheciam os filhos do velho patriarca, os netos, e os cães que traziam consigo e consigo desapareciam como se fossem eles a apagar o seu rastro no mundo. Era algo que me parecia quase mágico: num dia adormecia a sonhar com a próxima aventura “no meu castelo” e, pela manhã, mal saía à porta lá estavam eles, de casa às costas, como se sempre ali tivessem estado, e apenas uma ou duas vezes por ano a cortina desaparecesse e nos permitisse vislumbrar o outro lado do mundo.
Claro que o meu contacto com essas estranhas criaturas era reduzido ou quase inexistente. Em casa era proibido de me aproximar, não fosse o diabo tecê-las, ou uma qualquer doença trazida pela não vacinação me atacar. A sua não-rastreabilidade assustava as minhas cuidadosas progenitoras. Mas isso só aumentava a minha curiosidade. Lembro-me que inventava mil e um estratagemas para me aproximar, para arranjar um ponto de observação eficaz de onde, sem ser notado, pudesse absorver-lhes a alma, descobrir-lhes o segredo, seguir-lhes o rastro. E quando os seus olhares me descobriam, lá me escapava eu, vermelho, a rebentar de vergonha de ter sido descoberto.
Nesse mundo estranho e encantado em que vivi, os ciganos eram um desarranjo do normal, eram uma excepção, uma diferença infinita com a vida. E lá ficava eu a observá-los, achando que estava a empreender a mais arriscada das empresas. Tudo me atraía: as vestes negras, os longos cabelos das mulheres, as barbas e olhar desafiador dos homens, os banhos ao ar livre dos miúdos… Para mim era algo semelhante a um contacto com povos do outro lado da terra. Até a língua me parecia diferente! E ao anoitecer encantava-me a fogueira a crepitar na noite, os vultos, as músicas, os ruídos do burburinho ali ao pé. E um dia, tão magicamente como haviam chegado, partiam quase sem darmos por isso, deixando para trás um pequeno rasto de lixo que eu cuidadosamente investigava. Demoravam um ano (às vezes até menos) e depois lá regressavam a pedir um lugar.
Foi assim até que um dia, mais tarde, as regras foram quebradas, e os cães latiram toda a noite, tristes, angustiados por pressentirem a chegada do fim de um tempo. Um tempo que hoje me parece genésico (para mim, pessoalmente, era-o), que terminou com a partida definitiva dos ciganos, daquela família agora sem patriarca, sem o rosto da confiança, que durante tantos anos havia estabelecido os mais invulgares laços de respeito mútuo e amizade. Mas nem aí, nem no momento da traição e castigo se pode ter falado de falta de respeito: partiram numa tarde chuvosa, cientes de haverem quebrado o contrato que os uniu durante décadas à nossa casa. E lá foram. Sem rastro. Sem volta.
Hoje acho engraçado que, num mundo que muitos vêem e querem fazer ver como arcaico, limitador e opressor, houvesse este e muitos outros espaços de liberdade e respeito. De aceitação do outro, como agora está em moda dizer-se. Nesse mundo distante e cada vez mais mágico, os ciganos eram vistos como gente, gente diferente é certo e como não poderia deixar de ser, mas gente que, cumprindo com a sua palavra, levando uma vida honesta, podia acampar ao lado da nossa casa e viver lado a lado. Sem bairros sociais, sem descriminações positivas, sem paternalismos socialistas, sem ficções sociais. Gente com direitos e deveres; gente a quem era exigido que, podendo levar a sua vida como quisesse, não interrompesse o correr da vida dos outros. Gente que era respeitada, contando que também respeitasse. Como os tempos mudaram, Deus meu!
Hoje, ao ver um grupo cigano animadamente acampado numa esplanada no seu lado da cidade, arderam-me outra vez as feridas dos joelhos, e voltei a olhá-los com fascínio, como quando o tempo era de comer os dióspiros debaixo da árvore, limpar-me às folhas, e correr a construir um castelo nas toiças de giesta.
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