quarta-feira, 24 de setembro de 2008

acto I

Uma névoa encarnada projectava as horas na penumbra do quarto. Os minutos sucediam-se à cadência do coração, lento e apertado no peito, afogado nas lágrimas caladas de um frenesim de carne e sangue. Um soluço seco, um sufoco, viajava por dentro de si. No ar um cheiro a tabaco tomava espessura sobre o corpo nu e hirto, semi-descoberto numa cama cada vez mais pequena para dois. Ao seu lado T. dormia com a respiração funda e pesada de criança estafada depois de um dia de folia e guloseimas. A sua calma, a sua serenidade, a profundidade do seu sono – o sono dos justos depois da satisfação – pareciam-lhe quase uma ofensa, mais uma provação a suportar. Se ao menos conseguisse também assim dormir, tudo serenaria, tudo faria sentido, e amanhã, quando despertasse, talvez não tivesse passado de um sonho. Um sonho bonito e excitante, mas apenas um sonho. Sem mais consequências. Pensava como seria bom não haver consequências das coisas que se fazem; parecia-lhe libertador naquele momento viver a vida toda sem pensar em mais nada, sem pesar, nem ponderar, nem ter de atender a mais ninguém, senão à satisfação dos seus interesses e afectos e desejos. Ser absoluta e inteiramente livre, sem constrangimentos, sem medos, sem muros. Apenas ser. Intensa e violentamente, ser.

Distraiu-se por um momento, pois o cair dos minutos tinha parecido incomodar T. que agora, virando-se naquela cama pequena, pequena demais para dois, cada vez mais pequena para dois, se ajeitava encostando o seu corpo grande ao seu. O calor daquele corpo, aquele corpo ao qual ainda há pouco (ou seria já há muito? teriam passado já horas desde que os seus corpos se engalfinhavam e as suas mãos corriam o mundo um no outro? teria passado já tanto tempo a olhar para o tempo?) devorava a sua boca e as suas orelhas e o seu pescoço, sabia-lhe bem, transmitia-lhe alguma sensação de segurança. Era como se, se de repente o mundo ruísse e o chão tremesse, aquele corpo servisse de abrigo; e lembrava-se de simulacros e de conselhos das autoridades em caso de terramoto. Se algo acontecesse, nada lhe cairia em cima, e ali teria de ficar até os cães-pisteiros lhe descobrirem o rastro e dessem sinal de que ali estava, ainda a cheirar a T., com o gosto de T. na boca, e T. a fazer de trave protectora. T. decerto não se importaria dessa função salva-vidas e ainda haviam de rir os dois da cara dos bombeiros quando os vissem de lá sair.

Não conseguia perceber. Porque se sentia em segurança ao mesmo tempo que só tinha vontade de dali fugir. Pensou por momentos como seria bom levantar-se devagarinho, vestir-se e sair sem uma palavra, sem um beijo de despedida (afinal não tinha tudo começado assim, com a promessa de um beijo?), sem um aceno ou um olhar de relance. Mas logo se lembrava que era T. quem estava em sua casa, e não o contrário. Se assim saísse, mesmo que o pudesse fazer (depois diria ter algo a tratar de manhã cedinho e não ter tempo a perder, ou uma qualquer desculpa esfarrapada que não parecesse anunciar uma fuga constrangedora, ou não daria desculpa nenhuma. e pronto.), sentir-se-ia ainda pior, como se para além de tudo fosse cobarde. Não, isso não. Tinha de ali permanecer e dormir. Só queria dormir e acordar e decerto “amanhã tudo fará sentido!”, pensava. Dormir e acordar de novo. De novo.

Mais um minuto caía no relógio, aos poucos esmorecido pela claridade que começava a fazer-se notar. A seu lado, T. dormia cada vez mais serena e profundamente e agora o seu corpo parecia mais colado ao seu. Afastou uma perna, num gesto de pudicidade desconhecida, e ficou, quase em equilíbrio na beira da cama. Precisava de espaço, sentia as paredes apertarem-se e o ar fugir-lhe do peito. Talvez se se levantasse...Mas iria para onde? Ficaria a vaguear pela casa até ser dia? Iria pespegar-se em frente à televisão, como se tivesse insónias? Mas tinha frio. cada vez mais frio. Se ao menos tivesse “despachado” T. depois de tudo terminado! Mas os termos em que pensava sobre isso faziam-lhe ainda mais impressão. Porque sentia dificuldade em chamar “amor”, ou “sexo”, ou qualquer outra coisa ao que se tinha passado entre eles? Apenas conseguia pensar “naquilo”, “no que aconteceu”, “no que se passou”, e não conseguia dar um nome, um nome que pudesse descansar e arrumar o assunto. Um nome sempre serena, sempre arruma as coisas e evita que se pense muito nisso. E que descaramento T. ter ali ficado! Um mínimo de decência seria depois do “serviço feito” levantar-se e sair respeitosamente! E com esta última associação comercial sentiu um arrepio fundo e gelado subir-lhe e trepar à nuca, causando-lhe náuseas e aumentando-lhe a angústia. E a solidão.

Estranhamente, parecia-lhe ser disso que se tratava. (talvez a chegada da manhã ajudasse a aclarar as coisas no seu pensamento, talvez… quanto tempo faltaria para a manhã? talvez fosse melhor permanecer vigilante enquanto arrumava as gavetas e punha as entranhas a corar…). Agora conseguia perceber melhor (também, estava num estado cada vez mais desperto, e só pensava na hora em que T. acordaria, sairia – finalmente! – e deixaria o quarto só para si. “A César o que é de César”, dizia para consigo!) e o pensamento começava a fazer algum sentido: o que sentia, o que lhe causava aquela angústia profunda, era uma espécie de solidão. E quase que riu à gargalhada alto, quase que riu de si, por lhe ter passado pela mente aquela ideia estapafúrdia! “Solidão”, dizia para consigo, “solidão com “tudo o que se passou” e com T. aqui ao lado a ocupar-me a cama toda!”. “Tomara eu!”. Mas a ideia não lhe saía do pensamento e começava a fazer lastro. Pensava que enquanto tiveram “sexo” (a expressão parecia-lhe agora mais adequada, suficientemente neutra para não provocar dois pensamentos seguidos sobre o assunto), enquanto os seus corpos se engalfinhavam (sim, gostava desta expressão, “en-gal-fi-nhar”… fazia lembrar algo de carnal, de animal, algo que lhe agradava dado o contexto também carnal em que se encontrava, demasiado carnal numa cama cada vez mais pequena para dois), enquanto se engalfinhavam um no outro (decididamente a expressão era engraçada e imagética. Gostava e haveria de se lembrar dela para utilização futura), conseguia agora perceber, um estranho e perigoso abismo havia-se aberto no seu corpo: por um lado a sua carne, a sua pele, o seu desejo “engalfinhavam-se” com T., (sim, sem dúvida gostava da expressão. Tinha um toque de humor que lhe agradava; dizer que alguém se tinha engalfinhado com alguém, sexualmente falando, dava-lhe vontade de sorrir, ao mesmo tempo que lhe despertava os sentidos), apertavam T. contra si, desejavam T., beijavam T., queriam o corpo de T. cada vez mais no seu, na sua pele e no seu suor; por outro - lembrava-se agora, afastando, aos poucos, um véu fino, mas espesso ,que lhe envolvia a memória - uma parte de si, um fundo de si, talvez aquele a que comummente se chama de intimidade, um pedaço por encontrar, perdido em si, perdido no pulsar do coração, no fluir do sangue, apartava-se, fechava-se cada vez mais, e queria dali fugir. Como um menino assustado que tapa a cabeça e ali fica, imóvel, olhos bem fechados, à espera que o Papão não veja a tremedeira debaixo do lençol.

Mas porquê? Tudo fora consentido, tudo fora desejado. Tudo fora pressentido, e quando havia convidado T. para “só lá ir dormir” era óbvio que “só lá ir dormir” era a última coisa a “só” acontecer. E, de certa forma, tudo tinha sido bom. Tudo tinha sido muito bom. Tudo tinha sido satisfatório. Prazeroso, mesmo.

K. irrompeu de rompante e apareceu-lhe no pensamento. Durante todo este tempo havia permanecido por debaixo de todas as palavras, impresso em todos os pensamentos, um rosto a escapar-se como uma impressão num sudário, um nome tatuado debaixo da língua. Uma impressão sem impressão. K.! K.! K.! Era ainda e sempre K.! O que raio haveria em K., para, tanta água passada por debaixo de tanta ponte, ainda ali estar, ali, na dobra do fundo da sua intimidade, dentro de si, no meio de si e de T., a ter amor consigo, a amar_lhe?

(Não conseguiu evitar que um sorriso se plasmasse no seu rosto: a expressão tinha-lhe saído do fundo, cuspida abruptamente, sem preparação nem reflexão, do tal canto escondido e secreto da intimidade. Para mais, “ter amor” parecia-lhe bonito, poético, lembrando-lhe uma frase que Soror Saudade tinha para quando tinha um poema novo: “aconteceu-me um poema…” “Ter amor”, “acontecer amor” parecia-lhe digno e íntimo, ou no limite, muito menos foleiro do que “fazer amor” que lhe soava sempre a uma espécie de glossário íntimo da classe média, de mau gosto e sempre horroroso, nem sequer kitsh e, no mínimo, perfeitamente desadequado. “Fazer amor” era aquela típica expressão de alguém que, ou não quer chamar os bois pelos nomes, ou quer dourar uma coisa que nada tem de dourado. É um rodriguinho pateta. Ninguém “faz” amor e só a ideia lhe parecia risível. Não é da sua natureza ser feito. Quanto muito “acontece-lhe”. Caso contrário fode. “Acontece-lhe amor”, “tem amor com”, “tem amor por”; ou então “fode”, “fode com”, “fode por”, lembrando-se então daquele célebre aforismo de Sartre que dizia que o sexo é, apenas e tão só, o “esfregar de um tubo noutro tubo”. O que ele nunca tenha percebido – ou talvez tenha – é que o amor é todo criação, é dádiva, é inventividade e improviso, surpresa, deslumbramento, e arrebatamento. Coisa que não é possível conter em algo manufacturável. Nem sequer manufacturar. O sexo faz-se - se bem que só a imagem do Sartre a fazer o que quer que fosse com a Beauvoir lhe parecesse apocaliptíca! – o amor “acontece-se-lhe”. Recebe-se e dá-se, sem nunca ser feito, sem nunca existir verdadeiramente, ônticamente. Orgasmos até um galo dá. Voos, nem os anjos conseguem.)

Tinha então fodido com T. e “tido amor” com K. Uma espécie de ménage. Um dois, literalmente, em um. Uma gargalhada surda subiu-lhe pela garganta acima, e foi instalar-se à beira das duas lágrimas que começavam a espraiar-se pelo rosto, uma escorregando lenta pelo nariz a cair a despenhar-se no lençol (amanhã haveria de mudar os lençóis e assim lavar a vida e a alma). Na sua cabeça começava a fazer sentido e a cada vez tomar maior lugar, aquele sentimento de solidão que cada vez mais lhe apertava o peito. Havia estado ali, ali em carne com T., mas no seu íntimo havia estado, havia desejado, momento após momento, que aquela boca, aquela saliva, aquela mão, aquele gemido, fossem de K. De K. em carne e em intimidade. Em amor e em sexo.

K. rasgava-lhe o pensamento cada vez mais, como uma onda que vinda do fundo do mar cobre a terra de mansinho, a pouco e pouco, até não haver mais terra à vista. K. tomava-lhe de assalto o pensamento, e a intimidade e - conseguia quase sentir o seu cheiro - o corpo. Onde estaria K. naquele momento? Estaria a dormir? Lembrava-se de quando observava o seu sono e de como isso lhe enternecia o coração. Olhar e admirar K. enquanto dormia fazia-lhe sentir e acreditar na ordem do mundo. Nessa altura, respirando a respiração de K., escutando o borbulhar dos seus sonhos, acariciando o seu corpo fetal, sentia que as coisas se encaixavam, se serenavam, como se de repente o medo e a fome desaparecessem da face da terra. Sim, e isso agora era-lhe por demais evidente, era com K. que tinha estado sempre, apesar de, carnalmente, se ter “engalfinhado” com T. Era K. que lhe deixava a cama vazia, demasiado vazia, apesar de a sua cama ser cada vez mais pequena para dois com T. Era a sua ausência que doía, que moía e lhe esganava o prazer.

E agora “engalfinhar” parecia-lhe menos engraçado, menos estimulante, e se bem que absolutamente oco, absolutamente plástico, parecia-lhe também, cada vez mais adequado. "Engalfinhar" era a tradução pura, redonda, elíptica de como tudo tinha sido. Solitariamente, sido. A dois.


João Forji


A Case of You - Joni Mitchell

Sem comentários: