quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Khôra

Ce qui a lieu, c 'est le lieu
Mallarmé



…mas o que dizer deste artefacto (?), deste acontecimento, como um nome, como um sonho, khôra? É a propósito de uma passagem do Timeu de Platão que Jacques Derrida propõe uma leitura singular dessa "«qualquer coisa», que não é uma coisa": a "ininterpretável khôra". Na sua obra homónima, Khôra, Derrida diz que o próprio nome de khôra, ele mesmo significando «lugar», «praça», «colocação», «região», «terra», «mãe», «ama-de-leite», «porta-impressão» («porte-empreinte») está prometido ao eterno, ao indelével, mesmo se o que ele nomeia, khôra, não se reduz, sobretudo não se reduz ao seu nome. Percebe-se aqui a extrema dificuldade em traduzir, e isto é dizer, definir o termo khôra, ou seja, o "espaço neutro de um lugar sem lugar, um lugar onde tudo se marca, mas que será «em si mesmo» não marcado". Aliás, todo o texto derridiano é atravessado por esta obsessão, este esforço de aproximação ao sentido do termo empregue por Platão . Dando lugar à oposição logos-mythos, o pensamento da khôra não pode acomodar-se, excedendo a polaridade, parecendo jamais deixar ser tocada, compreendida ou interpretada por um qualquer tipo de tradução tópica ou interpretativa. Anacrónica, ela «é» a anacronia no próprio ser, "ela anacroniza o ser", só podendo abrir-se ou prometer-se na medida em que se subtrai a toda a determinação, a todas as marcas ou impressões às quais a dizemos exposta. Fugitiva, esguia, resistência e resistente, ela revela-se inacessível, impassível, «amorfa», sempre virgem - "de uma virgindade sempre rebelde ao antropomorfismo" - escapando-se à ontologia, à essência, pois não poderá haver qualquer determinação própria, sensível ou inteligível, material ou formal, e portanto nenhuma identidade a si.


Diferença arqui-originária, ela é receptáculo (dekhomenon) e lugar (khôra), mas não um suporte, uma espécie de folha líquida de inscrição: "soma ou processo do que vem inscrever-se, nela, a seu respeito, mesmo a seu respeito, mas ela não é o sujeito ou o suporte presente de todas essas interpretações.” Deste modo, khôra acontece como abismo, abismo abissal ("chasme abyssal"), "sorvedoiro", abertura caótica, afectando todo e qualquer discurso sobre o lugar, lançando-o no abismo, dando-o a pensar sem limites. E ao fazê-lo repõe a questão do lugar, do ter lugar, do ter lugar político, social, cultural, ou seja, coloca o discurso do genos, do lugar próprio a partir do qual a verdade do logos seria garantida. Temos aqui khôra como lugar político, do político," o lugar destinado às crianças” - a cada uma será atribuído um lugar - o lugar geral, o lugar investi, por oposição ao lugar abstracto. Khôra como receptáculo total: dá lugar à medida do cosmos.


Na sua indeterminação arqui-primordial, khôra surge, por detrás do véu, sempre esguia, como um espaço de recebimento, aceitação, acolhimento, recolhimento: um lugar da hospitalidade. Khôra não deve receber, ela deve não receber o que ela recebe. Esta é a sua determinação mais recorrente no texto de Platão: receptáculo, lugar de acolhimento ou de hospedagem. Ela dá-se como sendo o lugar por excelência, o lugar insubstituível, impossível de achar, de encontrar. Espaço arqui-originário, uma origem mais originária que a própria origem, khôra é o lugar de inscrição de tudo o que se marca no mundo, uma necessidade não geradora nem engendrada, que excede e precede, numa ordem a-lógica, a-crónica, anacrónica.


Ou (num ainda mais profundo “filosofês”) como diz Fernanda Bernardo em "A Promessa do Texto, A (Arqui-)Escrita de Derrida", Khôra será o "nome de um espaçamento que, não se deixando dominar por nenhuma instância teológica, antológica ou antropológica é o mais antigo do que todas as oposições, que a partir da oposição matricial «sensível/inteligível», lavram a história da ocidentalidade filosófica, sem se anunciar também como o além do ser da via negativa.“ Ela diz na memória o inapropriável, a saber, o imemorial de um segredo sem segredo, sem tempo, sem génese, um começo mais antigo que o começo...


Ela é um X que tem por propriedade não ter nada de próprio e ficar informe. Uma singular impropriedade, um X amorfo, eis o que deve ser registado e salvaguardado sobre khôra!


- É, portanto, fazendo finca-pé neste lugar, neste chão-sem-chão – virtual pois! - um limite-limiar líquido, neste tempo para além do tempo, que me endereço, que me escrevo, que me faço presente. É a partir daqui que a medida do meu cosmos será pensada e dita e tocada e bordejada. Espaço aberto por excelência, este será o espaço dos meus olhares, das minhas braçadas: de Platão a Derrida, do universo infinito em expansão, à cor dos lençois dos atletas olímpicos (?) que “de manhã, só na caminha”…


- Aqui nascerão e morrerão os silêncios. Do amor. Da respiração. Das mãos. Aqui fiarei e desfiarei os dias, os arrepios, os rangeres de dentes… Com as trivialidades e com as capitalidades.


- Aqui cultivarei as rosas e deixarei uma ou outra lagarta para que surjam borboletas

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