terça-feira, 21 de outubro de 2008

Da democracia (em abstenção)

Realizaram-se no passado domingo as eleições para a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores. O Partido Socialista saiu vencedor apoiado por 23,36% dos eleitores açorianos. Os mais atentos a estas coisas dir-me-ão de imediato: “ Olha que o PS teve mas foi 46,96% dos votos, estás enganado!” Mas não, não estou. Aliás, nenhum de nós estará errado e nem é preciso fazer a quadratura do círculo. Ora vejamos:

1) o PS venceu efectivamente com 46,96% dos votos expressos validamente .
2) o PS foi efectivamente apoiado por 23,36% dos eleitores açorianos.

Como? É simples: uma vez que a Abstenção foi a grande vencedora com 53,24%, basta fazer meia-dúzia-ou-não-tanto de contas simples para perceber que os 46,96% dos votos expressos e válidos significam na realidade (tendo em conta que estamos a falar de um universo de 45070 votos socialistas) 23,36% dos votantes açorianos (cujo universo para estas eleições se saldava em 192956 eleitores).

Mas não fiquemos por aqui. Se olharmos rapidamente para o resultado das últimas Eleições Legislativas para a Assembleia da República em 2005, facilmente constatamos que os supostos 45,03% dos votos no Partido Socialista (para esta análise basta olhar para o vencedor pois é esse que interessa) são na realidade os desejos de 28,94% dos eleitores nacionais (uma vez que o universo destes era de 8944508 eleitores, dos quais, 2588312 votaram no Partido Socialista).

Continuemos. Se olharmos para os resultados das últimas eleições para a Presidência da República, em 2006, das quais saiu vencedor Cavaco Silva, vemos que do universo de 9085339 eleitores, apenas 2773431 preferiram o candidato vencedor. Assim, ao contrário da percentagem vitoriosa de 50,54%, podemos dizer que o Presidente da República foi escolhido por 30,53% dos eleitores.

E, para terminar, seguindo a mesma metodologia, constatamos que no Referendo ao Aborto de 2007, e apesar de aqui sabermos que a abstenção atingiu recordes, o Sim ganhou com os votos de 25,34% dos eleitores nacionais.


Comentários:
a) ainda bem que estas contas não são feitas tendo em conta o número total da população, senão era ainda mais humilhante;

b) a “democracia portuguesa” (se é que se pode falar disso com estes números) está, podemos dizê-lo, em abstenção;

c) já se percebe porque é que os nossos campeões da democracia à gauche são tão veementemente contra o voto obrigatório (de resto, parece-me, a única maneira de assegurar a democracia como demos cracia, efectivamente!): se todos votassem até podia acontecer que a verdadeira maioria não os preferisse a eles e isso era trágico. Para eles, claro está!

d) a esta luz não se entendem tantas críticas ao sistema eleitoral da Segunda República: também esse, segundo os seus detractores, elegeu o Almirante Américo Tomaz em 1958 com 25% dos votos: para quem fez uma revolução e afins para mudar o sistema, estão demasiado parecidos para o meu gosto!

e) a democracia é, por definição e vocação, a ditadura da maioria. Ditadura essa renovada por actos eleitorais regulares, que sendo exercidos livremente, podem (e devem, muitas vezes) mudar os vencedores, nunca havendo lugar à efectiva tomada do poder por um grupo/facção/partido. Ou pelo menos é esta a teoria. Na prática “esclarecida” à portuguesa (de resto uma das “mais consolidadas, maduras, etc e etc” como ouvimos dizer diariamente) a democracia é o governo de todos por uma parte – sim -, mas não a parte maioritária: é o governo da maioria por uma minoria. Logo, em bom rigor, uma espécie de ditadura. Como? Muito simplesmente com filosofia e linguagem. Como? Também é simples: em vez da nossa democracia ser alicerçada no voto da maioria da população para isso habilitada (esse limite é intransponível pois todos vemos a idiotice de uma criança de um ano ser obrigada a votar, ou coisa parecida) a democracia em abstenção à portuguesa é alicerçada na voto da maioria dos que até se incomodam-e-não-vão-à-praia-ou-ao-shopping-ou-coçar-a-micose-ou-têm-um-primo-que-até-é-candidato o suficiente para se deslocarem à câmara de voto para decidir, tão só, o futuro colectivo do lugar onde fazem a vida…

f) estou perfeitamente consciente que assim acontece em grande parte das “democracias” por aí vigentes ,especialmente na Europa e na América onde a coisa é mais comum (as democracias africanas dos 90% de votos num partido fazem-nos suspirar pelos 30% do Professor Cavaco…). Mas também tenho consciência que em muitos lugares assim não é, e o voto é obrigatório, já que, mais do que um direito, é um dever: a “tirana” Suíça que tudo decide eleitoralmente ou o Brasil são casos em que a coisa acontece. E ao que parece as pessoas até gostam. Talvez seja porque, na realidade, contam. O que, convenhamos, não é de todo despiciendo…

g) para quem inventou e vive numa democracia tão fajuta (passe o brasileirismo) como esta (já para não falar da esquizofrenia latente do sistema semi-presidencialista, como gosto de lhe chamar: o Povo elege o parlamento com o seu voto; o parlamento - eleito pelo Povo, vamos devagar para se perceber - dá origem ao governo; e depois o Povo elege um tipo para controlar o parlamento e o governo que, portanto, ele próprio escolheu) já se calavam com as laudas à nossa democracia.

h) é certo que a democracia, por definição, e por influência derridiana, é sempre uma democracia por_vir, sempre a_vir. Só escusava era de ser assim abs_tença.

Sem comentários: