sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Pessoas-bichos *

Já várias pessoas me conhecem a teoria (não-assente em qualquer base científica, como quase todas as minhas pseudo-teses) de que toda a gente tem cara de bicho.
A maior parte, cara de uma qualquer raça de cão (por favor, nunca repararam como o Mário Soares se assemelha a um bulldog??), alguns cara de réptil, outros de pássaro, outros ainda de peixe. Fisionomicamente, é-me fácil estabelecer comparações do género, sei lá bem porquê.

Claro que, depois, há o resto: a parte de dentro que, muitas vezes, nada tem que ver com o que os olhos vêem. Claro que, com frequência, uma pessoa-São Bernardo é-o a todos os níveis: olhar meigo, feitio pachorrento (se não lhe bulirem com os nervos), gestos ao rallenty. Ou uma pessoa-caniche (imagine-se o cabelo), com aquela forma de estar irrequieta, voz aguda e sempre a mil.

Mas há aqueles que não têm cara de nada e que aos poucos vamos descobrindo serem coisas. Bichos.

Há as pessoas-carraças, que não fazem bem a ninguém nem percebemos para que servem, perdoem-me os tais passarinhos que poisam nos touros e lhas comem do lombo, haverá com certeza algum alimento substituto; sugam o sangue (e o tutano, se puderem) dos outros até ficarem gordos e grandes e viscosos e nojentos sem que, infelizmente, se descubra qualquer Advantix (o Frontline já era, diz a F., e a F. sabe tudo, que me pôs a Petra fina que nem um alho) que lhes trate da saúde.
Há as pessoas-andorinhas. Aquelas que só vemos sazonalmente mas nos enchem a vida de Primavera sempre que aparecem. Que sabemos que não vão ficar muito tempo mas, enquanto ficam, constroem os ninhos bem próximos de nós e dão-nos o prazer da sua presença, enquanto não é hora de partir. E que, quando partem, é sempre com um até já, um até sempre. Sabemos que voltarão, para nos anunciar bom tempo.
Temos as pessoas-cavalos-brancos. As que, entrem onde entrarem, fazem virar cabeças. Pelo porte, pela inteligência que se lhes adivinha na graciosidade com que se movem. Doces e fortes ao mesmo tempo, são uns dos meus preferidos.
Encontram-se muitas pessoas-pavão, aquelas a quem apetece atingir com o jacto de uma mangueira, a ver se não perdem o ar enfadado e superior num "ai".
Há ainda as pessoas-leão (nada que ver com o signo), as que se enconstam às leoas e elas que vão à vida, que eles nasceram para reis da selva e limitam-se a dar a honra da sua existência.
Há as pessoas-cão, massa de que são feitos os amigos. Fiéis, honestos, puros. Dão o que têm e o que não têm para nos fazer felizes, adivinham-nos os pensamentos com o olhar, estão sempre prontos para nos acompanhar, não porque tem de ser mas porque lhes apetece (não lhes apetece outra coisa, de resto).
E as pessoas-gato, tembém há muitas dessas. Tenho gatos, toda a vida tive. Admiro-lhes a elegância, a maldade divertida, a independência aparente. Gosto de gatos; não como gosto de cães, mas gosto de gatos. Não aprecio, conquanto, pessoas-gato. Aquelas que se nos enroscam no colo quando precisam, mas vão caçar pássaros e estão dias sem aparecer, se restabelecidas. As que vêm com sorrisos e abraços e mimos porque têm necessidade de afecto, ou de comida, ou de carinho, mas debandam para outros colos, se estes corresponderem a algo que, na altura, lhes apeteça mais. As que tão depressa ronronam palavras doces como nos espetam uma unha, porque lhes tocámos numa parte do corpo onde não gostam de ser tocados. As que nos rosnam, se as abordamos quando não lhes apetece serem abordadas, para logo depois virem roçar-se-nos nas pernas, voltando tudo ao início.

Não, definitivamente não gosto de pessoas-gato.
Prefiro as carraças, ao menos já sei com o que conto.


Ana Andrade


* Gosto de pessoas-gato. Toda a vida gostei. Quer-me até parecer que grande parte dos meus amigos tem, de alguma maneira, alguma coisa de pessoa-gato. E acho que sempre amei pessoas-gato. Sempre me fascinaram no seu charme, na sua elegância, na sua inteligência, na sua docilidade, no seu orgulho, na sua fragilidade-nunca-aparente. Mas sem nunca quebrarem, sem nunca se renderem, sem nunca se submeterem. Isso atrai. Isso espicaça a vontade de descobrir o ponto que as faz ronronar, o ponto debaixo do queixo onde encostam a cabeça à nossa mão e se deixam levar. Como quando uma onda nos apanha e nos enrola para nos deixar exaustos na orla da praia. Sempre me agradaram as pessoas independentes, sempre admirei as pessoas que, nas piores dores do mundo, mesmo quando destruídas por dentro, mesmo quando estragadas, arranjam maneira de continuar. Arranjam maneira de seguir caminho. Sem queixumes, sem vitimizações, sem choraminguices (sou uma retroescavadora sentimental!). Sempre me irritaram os prantos, os ais, as desgraceiras, os ganidos. O que não quer dizer que as pessoas não tenham momentos de tristeza, momentos cinzentos e negros e doridos e sangrantes. Não. O que sempre me irritou foi aquela gente que não faz mais nada senão queixar-se, senão lamentar-se, para quem a vida é uma imensa sucessão de desastres e tragédias. Se o for que seja com um sorriso. Que seja de cabeça erguida como vela ao vento. Que a chuva nos apanhe de rosto erguido e nunca caídos em lamúrias no meio da lama. Gosto pois de pessoas-gato. Gosto do combate para conseguir alguma domesticação. Atrai-me o esforço de educação dos gatos. E das pessoas-gato, mesmo que pelo meio exista toda a transgressão das regras.


Só me faz impressão - e isso é a nossa ponte Ana, estavas a ver que nunca mais lá chegava, ah pois é! - as pessoas-gato-vadio. Destas não sei se gosto. Ou melhor: gosto, acho que não consigo não gostar, mas faz-me muita confusão o profundo desprezo que têm pelo outro. Uma pessoa-gato, por muito que vá caçar os seus pássaros, volta numa manhã para se enroscar ao nosso colo. E isso é bom! Isso reconforta. Isso até pode ter um nome: fidelidade. Melhor: lealdade. Agora as pessoas-gato-vadio não - nunca saberemos se algum dia voltarão, nunca saberemos se efectivamente gostam das nossas festas ou se apenas as querem enquanto não arranjam lugar melhor ou enquanto não partem. Partem, não porque queiram o seu espaço, mas porque nada as prende verdadeiramente a nada. Entendem esse desprendimento como sendo uma virtude, como sendo a tão famosa independência. Mas a independência é ter um lugar (seja ele qual ou onde for), mas ter um lugar. Mesmo que esse seja um lugar líquido como este, mesmo que seja uma khôra, é tê-lo. É desejá-lo. É encontrá-lo, de cada vez, como a primeira vez. Mas as pessoas-gato-vadio não o têm. Passam a vida a pular de árvore em árvore, comendo aqui e ali, dormindo aqui e acoli. Para, no fim de contas, acabarem por nada levar consigo. Acabando por nada (a)prender. Procuram nem sabem bem o quê, e quando chegam ao fim da caminhada olham para trás e só encontram um deserto. Sem nenhum tipo de construção. Nem de destruição. Apenas um vazio. Todas as suas paragens foram descartáveis. Chegam a um lugar, usam-no, e partem sem pensar muito sobre o assunto. Vivem ao minuto, sem memória, sem afectos, sem ligações. Nada levam consigo, devoram o futuro sem passado. E essas, às vezes, incomodam. E às vezes, magoam. Agora as gato? Venham elas!

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