segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Time has come today *

"Time waits for no man. Time heals all wounds. All any of us can wants, is more time. Time to stand up. Time to grow up. Time to let go." Meredith Grey Voice Over, “Time has come today”, Grey’s Anatomy



De um momento para o outro a vida muda para sempre. De um momento para o outro a nossa vida muda para sempre. Umas vezes é num mero instante; noutras demora anos a acontecer. Nunca podemos estar seguros de nada, nunca podemos estar seguros de continuar: a ser felizes, a ser infelizes, a chorar, a rir, a esperar, a sentir, a respirar… Muitas vezes nem podemos mesmo estar seguros de continuar. De continuar a continuar. Piscamos os olhos e zás: a vida tal como a conhecíamos muda, e o que é pior, o que mais nos angustia, muda sempre para sempre, sem volta a dar-lhe, sem volta à ré porque percebemos mal, porque nos enganámos, porque estávamos bem como estávamos, porque gostaríamos de não ter feito o que fizemos, porque nos arrependemos e queremos emendar a mão. Pôr as coisas certas. Refazer. Porque queremos dizer tudo o que não dissemos. Porque queremos calar tudo o que não calámos. Acima de tudo queremos que tudo fique no seu lugar. Ou pelo menos no lugar onde achamos que tudo deve ficar. Mas não. O tempo dá-nos um coice e lá vamos nós na espiral. Queremos parar e não podemos, somos empurrados para a frente e temos de continuar, mesmo quando tudo o que queríamos era parar, era sentarmo-nos numa pedra do caminho e ficarmos ali um pouco. A pensar. A digerir o choque. A chorar. A digerir o tempo e as suas ingerências na nossa vida. O tempo e os seus sustos, os seus sobressaltos. Mas não podemos. Queremos parar o mundo, suspender a rotação terrestre. Queremos dar-nos tempo. Queremos ter tempo para reagir, para pensar e não podemos. Temos de continuar. Com a cabeça ainda confusa da pancada, temos de continuar. A sangrar as entranhas, a esvairmo-nos de dor roxa, mas temos de continuar. É preciso dizem-nos. Il faut!





Mas às vezes recusamo-nos a seguir. Há alturas em que recusamos, mesmo, seguir. Paramos, fincamos os pés na terra e ali ficamos. Arrastamo-nos para debaixo da casa e esperamos. Apenas queremos um canto que nos agarre e que nos esconda. Apenas queremos enrolar-nos. Sem testemunhas. Sem abraços. Sem conforto. Sem consolo. Apenas um canto onde nos sintamos assépticos. Onde tudo seja branco e não nos force, não nos obrigue a desviar o pensamento do roxo. Um lugar onde possamos contemplar o vazio. Onde possamos quedar-nos. Onde possamos ficar. Só, ficar. Mais nada.





Quando alguém morre, quando alguém a quem amamos morre o que mais custa é o sempre. Ou se quisermos, o nunca. Mesmo que acreditemos numa outra coisa ou numa outra vida ou num outro mundo ou numa outra oportunidade, o que mais custa é o nunca mais. Para sempre, nunca mais. O nunca mais ser igual. O nunca mais ser assim. O nunca mais termos aquele olhar, aquela voz, aquele sorriso, aquelas mãos, aquele cheiro. É o nunca mais podermos partilhar. É estarmos avassaladoramente mais sozinhos. Mas solitários. Absolutamente sozinhos, como se todo o mundo desaparecesse num gigantesco buraco. Como se só a nossa voz ecoasse pelas planícies, subisse às montanhas, penetrasse os mais profundos mares. E não encontrasse resposta. E não houvesse mais ninguém. E só restássemos nós. Pior: apenas eu. Só eu. .





Deve ser a isso que chamam luto. Fazer o luto. É como se o tempo, se a vida, se a normalidade, todos tivessem um ritmo diferente do nosso. É como se estivéssemos em slow motion. O mundo todo acertado, o mundo todo a tempo, e nós atrasados, e nós mais devagar, nós a movermo-nos mais devagar, a comermos mais devagar, a falarmos mais devagar. Nós desfasados. Como se aquela morte, aquela falta no mundo tivesse provocado um desarranjo, tivesse provocado um qualquer bug que só a nós nos afecta. Talvez seja por isso que nessas alturas sentimos a pena. Vemo-la nos olhos dos que connosco se cruzam. Sentimos-lhe o cheiro. Sentimos-lhe o toque. E isso torna a dor ainda mais dor. Isso torna o desespero ainda mais fundo. Isso humilha-nos, magoa-nos, expõe-nos ainda mais. E força-nos a um recuo, obriga-nos a um maior fechamento. Daí que choremos alto. Para encher os espaços. Para preencher. Para colorir os espaços em branco. Para soprar uma bolha que nos defenda das facas. Que nos abrigue. Que nos esconda.





Porque nos sentimos pequenos. Porque nos sentimos meninos com medo do papão. Porque nos sentimos impotentes. Incapazes de salvar. Incapazes de resgatar. De sermos heróis. De sermos tudo o que prometemos. De sermos um milagre. Sentimo-nos feridos, caídos do ninho, incapazes de regressar. Ao lugar. Ao nosso lugar. Ao lugar onde tudo antes fazia sentido e agora já não faz. E é isso que é preciso. É fazer sentido. É preciso fazer sentido. É preciso que compreendamos o que se passa. E para isso nem é preciso morrer alguém! Muitas são as formas pelas quais podemos ficar estragados! (Gosto desta expressão, ficar estragado. Aprendi-a há pouco tempo, mas entrou logo para o coração. Porque é certeira. Porque diz mais do que parece. Porque só “fica estragado” o que “passa do tempo”, o “que está fora do tempo”, o que é “atropelado pelo tempo”. Porque só fica estragado o que “era a tempo”, o que “estava a tempo”. E isso é bom. Isso consola. Isso ajuda a crescer.)



Até que um dia estamos prontos. Até que um dia podemos recomeçar, podemos apanhar de novo o comboio, podemos seguir ao ritmo normal. Um dia a rotação da terra deixa de provocar tonturas. E seguimos. Estragados, mas seguimos. Aprendendo a viver sem um bocado. Arranjando maneira de continuar. Estragados, mas vivos. Reconciliados com o tempo. Com uma nova cicatriz, mas vivos, Reconciliados connosco. Seguimos. Levantamo-nos do chão, sacudimos a poeira, passamos a mão pelo cabelo. Acariciamos a cicatriz, medimos-lhe o tamanho, apreciamos-lhe o tom. Sorrimos. Estamos prontos. Estamos, de novo, prontos. Como novos. Como novos.



* Grey’s Anatomy é, seguramente, uma das melhores séries de sempre. Uma autêntica obra de arte. Mais do que a “típica série sobre médicos e hospitais”, é uma série sobre a vida e os seus soluços. Sobre a diversidade dos dias. Sobre as cicatrizes que vamos acumulando. Tem, para mim, uma imagem de marca: o magnífico guião. É, com toda a certeza, uma das séries mais bem escritas que já vi. Tem diálogos que deveriam passar a constar nas selectas literárias. E alia isso a uma história equilibrada e rica, interpretações de suster a respiração, um décor sóbrio e directo, uma banda sonora eficaz e muito interessante. Mas os diálogos… ui! São de tirar o fôlego. Este episódio que aqui deixo é disso um exemplo. Desde que o vi que não me consigo separar dele. Tudo nele é necessário, nada é excesso, nada está a mais. Perfeito. Absolutamente perfeito. Absolutamente triste, também. Mas daquela tristeza feliz, aquela tristeza bonita da qual já aqui falei. Uma tristeza catártica. Como uma crise de choro (e se há coisa que esta série me provoca são crises de choro e soluços a esganar-me a garganta e gargalhadas e sorrisos estampados na cara) que alivia. Perfeita.

1 comentário:

Anónimo disse...

Quanto chorei ao ver este episódio. É a minha série preferida. Todos os dias, para curar as feridas, vejo um ou dois episódio, já metido nos cobertores. (Sou friorento.) Às vezes, se não tenho muito sono, vejo três. _*