sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Vozes I

- …

- … mas o que raio é que tu não sabes? não percebo o que se passa... e isso irrita-me… fala comigo!...

- … não sei, não sei… foste a única pessoa a tocar-me, a magoar-me (...) a chegar aonde nunca ninguém chegou… tão fundo no meu coração...não sei porquê…não consigo…não sei, não sei… preciso de espaço… preciso de pensar…

- …pois … porque é que terá sido? já pensaste nisso?...

- …

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Eterno Presente

Anda agora aí uma mania, ou melhor, um erro que me deixa absolutamente doido. Eu intitulo-o a “Mania do Eterno Presente”, o que, à partida, soa sempre melhor do que a coisa em si. Passo a explicar-me: já haveis reparado na autêntica epidemia que cavalga nas nossas televisões (e o pior é que não é só lá) de trocar o pretérito pelo presente na primeira pessoa do plural? A malta agora já não adorou, nem comemorou, nem andou, nem visitou nada… continua – eternamente, certamente - a fazê-lo. Daí que diga: “nós fomos ao Porto e adoramos quando visitamos Serralves enquanto comemoramos o nosso primeiro aniversário juntos” (desculpem o exemplo pateta, mas serve para ilustrar o que quero). Tudo isto em vez do – até me parece mais lógico e até soa melhor – “nós fomos ao Porto e adorámos quando visitámos Serralves enquanto comemorámos o nosso primeiro aniversário juntos” (irra, que o exemplo é mesmo mau…repetido soa ainda pior, mas olhem, é o que se arranja…). Mas o que é que deu a este povo para começar a destratar assim a língua?! A influência da pronúncia brasileira não pode explicar tudo… Será que ninguém acha minimamente estranho que todas as suas acções do passado estejam sempre e ainda a acontecer??? Eu sei que em falando de língua portuguesa e maus tratos, somos peritos; mas este dói-me, e sempre que o oiço (ou seja, diariamente) é ver-me a trepar paredes... Fico, como o António Silva nas tardes de Domingo da minha infância, “piúrso”!!!

P.S. Diga-se de passagem que este erro de português talvez seja o sintoma de uma característica da civilização em que vivemos: a obsessão com o presente, com um eterno presente. Desde a cirurgia estética para conseguir tudo o que não seja alguma marca de envelhecimento (e, possivelmente, sabedoria), à ginásio-mania que faz algumas criaturas já parecerem o boneco da Michelin em músculos e brutidade (mas alguém acha que fica bem naquele estado?), culminando no fascínio pelas pseudo-celebridades e pelo seu mundo sempre-em-festa-onde-há-croquetes-grátis?!... Pois… “Piúrso” mesmo!

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

One night stand

Um olhar. Um impulso. Um desejo a arder à flor da pele, a excitação da conquista, o atordoar da presa - sempre a caça presente. Sempre o instinto e o genoma a levar a melhor.



Alvorada. O suor frio escorrega ainda nas coxas. Um olhar. Um impulso. A vontade escorrida pelo chão. As calças vestidas à pressa. Uma frase que nasce a morrer no bater de uma porta.


One night stand. Once more, one night stand. Todo o desejo contido numa noite. Toda a carne do mundo num abraço. Todos os beijos do mundo numa boca. A busca incessante. A busca sem parar. Sem abrandar. A busca da surpresa, do arrebatamento. A procura, o desejo inconfessado de que aquela seja a última caçada, que aquele seja o encontro da terra. O desejo de um lugar, de uma casa, um espaço para o qual voltar, um espaço ao qual se regresse. A festa nos gestos, toda a esperança a viver no olhar. O fim da caminhada à vista, ali, já ali. Uma primeira vez para todas as primeiras vezes. Uma noite que cante todas as noites. As sandálias a amarelecerem cobertas de pó – imóveis.

One night stand. Once more, one night stand. Todo o medo do mundo a abraçar, a arrefecer os ossos. Fria, a manhã, gelado o olhar. Toda a solidão a encher os cantos. A busca incessante. O desejo de partir, de avançar, de continuar. O engano, mais uma vez, o engano a doer. Siga-se caminho com a vergonha da derrota, a vitória espera os audazes – pelo menos eles assim o sonham. A desilusão a amargar na boca, o susto da queda ainda a atordoar. Todos os passos do mundo num passo. O desejo adormecido, enroscado em si, perdido numa dobra do lençol. Um telefone que não pára de tocar, uma resposta que não se quer dar, que não se tem. Tudo já foi dito. Só restam algumas vírgulas abandonadas e solitárias. Tudo já foi dito.

Once more.

sábado, 25 de outubro de 2008

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Habeas corpus


Hoje quero o teu corpo, mais nada.

Preciso que a tua língua lavre a minha pele.

Hoje preciso que me ames para além das palavras.

(As palavras não têm o teu cheiro. Não escorrem suor. E só às vezes aquecem por dentro.)

Vem. Caminha como se eu fosse uma duna.

Hoje eu sou o amor inteiro em chamas.

O centro do desassossego do fundo do mar.

Despedaça-me. Para que quero eu um só coração?

Não preciso de um par de mãos vazias

Nem de dois pés que não me defendem da vertigem do voo.

Hoje quero o teu corpo. Contra o meu corpo. Força bruta.

Preciso dessa constrição como desculpa para o movimento de crescer. Hoje.


Frederico M.




Piece of My Heart - Janis Joplin

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Suas mãos

As suas mãos, onde estão?
Onde está o seu carinho?
Onde está você?

Se eu pudesse ir buscar
Se eu soubesse aonde está
Seu amor, você

Um dia há de chegar
Quando, eu não sei
Você vai procurar
Onde eu estiver
Sem amor, sem você


Antônio Maria

Suas Maos - Caetano Veloso

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Sobre a arte

A arte é o que sobrevem em nós, apelando à magistralidade do mistério, que apela, que intriga, mas que se esconde – para sempre – no registo do desconhecido.
Quando confrontados, quando postos em jogo pela obra de arte, estabelecemos com ela uma relação de cariz mágico, com toda a profundidade, o silêncio e a emotividade subitamente pudica e reservada da religiosidade. A obra de arte re-ve-la-se-nos como Deus, sem nunca… - se mostrar, sem nunca nos dar o tom da sua própria dicção, apelando aos sentidos qual visão dos anjos mensageiros apelando à conversão.
É assim que a obra de arte é e vai sendo conversão, isto é, ela actua em nós suspendendo o tempo, mas convertendo-o em promessa anunciada, em vivência extra-histórica – para além do saber, do ver, do ouvir, do sentir… -. Permanecendo sempre estranha e sempre (de cada vez) nova; sendo embora e sempre uma novidade inebriante (quantas são as vezes que temos de ler um poema para o possuir, para o ler? Para o compreender? Não o compreenderemos – sem o compreender – de cada vez, no desejo de apropriação – condenada à expropriação – que nos afunda? Qual o tempo para olhar uma tela? Qual o ponto-do-olho para o fazer e captá-la na sua totalidade?) a obra de arte convoca-nos a voz e toma-nos o pensamento no sangue que flui incessantemente, atirando-nos para algures. Fora de nós. Irremediavelmente exilados do nosso próprio corpo, sem nunca nos identificarmos com ele… e connosco. Fatalmente em abertura acolhedora, ditada pela anterioridade da alteridade em nós. Antes e já sempre em nós, depois de nós. A obra de arte descentra o sujeito arrastando-o “pelos becos lamacentos, redemoinhando aos ventos” e obrigando-o, forçando-o a um novo e sempre em formação – a caminho… - repensar do mundo. Como se fosse a primeira vez! Como se antes nunca houvesse outras telas, outros filmes, outros romances… como se antes fosse o momento criacional genésico perdido desde sempre, para sempre! Como uma oração repetida com fervor para per-durar… para não esquecer, esquecendo sempre que já foi dita!
A obra de arte coloca-nos a sonhar acordados; como um sonho adormece-nos na sua forma, na sua aparição fulminante e radical; como um sonho, interrompe-nos despertando-nos – em vigília, em cuidado – lançando-nos no desespero lancinante, na agonia profunda de ir para além do ente e da própria essência, desconstruindo-nos como nó na linha a ser tecida – uma passagem, uma separação que nos une afastando, lançando o sujeito no polemos, na controvérsia, e ao mesmo tempo, epocalizando-o paradisiacamente. Prazenteiramente. O prazer agonizante na dor da hemorragia de ser… a constituição fluinte, aquosa de ir-sendo no mundo… sem foz nem destino… repetindo o inolvidável, e sempre sem conhecer, sem reiterar.
- Como consegue a arte – uma manifestação artística – interromper o saber, o normal correr/fluir da vida de cada um? A arte é o que chega sem ser esperado: é o profundo acontecimento, mais profundo que o fluir constante da vida; é o acontecimento que vem enquanto novidade, enquanto advento. Surge e instala-se na percepção do sujeito, a partir daí irremediavelmente aberto hemorragicamente a essa manifestação, que não controla, que o enlaça, o fascina, prendendo-lhe a atenção, a reflexão – provocando-o, possuindo-o, ultrapassando-o no seu poder magistral.
Arrastado para o desconhecido – “o mundo” aberto, o abismo profundo e insondável, a queda espácio-temporal que forma uma tela, um poema, uma peça teatral, um filme, uma escultura, um romance… - o eu suplicante de harmonia, choroso pelo equilíbrio perdido, pela agonia perante o não-saber, sente-se assim como que possuído demoniacamente por algo que não sabe o que é, que não consegue figurar, re-presentar. Sabe apenas – se é que alguma vez o chegamos a saber – que estabeleceu uma relação com “aquilo”, “aquela”, com a alteridade que de-fronte dele (e já nele…) o joga num remoinho sensorial que, ao mesmo tempo que o perturba, que o turva, que o arrasta aos gritos pelo chão atirando-o contra a parede… ao mesmo, enfeitiça-o, desperta-o, abraça-o – sem sequer lhe tocar e sem sequer ter braços… - prendendo-o como Orfeu obstinado por Eurídice…
…como no amor…
… como se a obra de arte fosse a Voz de Deus apelando e intrigando a consciência na quietude e no fervor de uma oração…



Publicado na Oficina de Poesia, n. 0, série II, Palimage Editores, Coimbra, Março 2002.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Da democracia (em abstenção)

Realizaram-se no passado domingo as eleições para a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores. O Partido Socialista saiu vencedor apoiado por 23,36% dos eleitores açorianos. Os mais atentos a estas coisas dir-me-ão de imediato: “ Olha que o PS teve mas foi 46,96% dos votos, estás enganado!” Mas não, não estou. Aliás, nenhum de nós estará errado e nem é preciso fazer a quadratura do círculo. Ora vejamos:

1) o PS venceu efectivamente com 46,96% dos votos expressos validamente .
2) o PS foi efectivamente apoiado por 23,36% dos eleitores açorianos.

Como? É simples: uma vez que a Abstenção foi a grande vencedora com 53,24%, basta fazer meia-dúzia-ou-não-tanto de contas simples para perceber que os 46,96% dos votos expressos e válidos significam na realidade (tendo em conta que estamos a falar de um universo de 45070 votos socialistas) 23,36% dos votantes açorianos (cujo universo para estas eleições se saldava em 192956 eleitores).

Mas não fiquemos por aqui. Se olharmos rapidamente para o resultado das últimas Eleições Legislativas para a Assembleia da República em 2005, facilmente constatamos que os supostos 45,03% dos votos no Partido Socialista (para esta análise basta olhar para o vencedor pois é esse que interessa) são na realidade os desejos de 28,94% dos eleitores nacionais (uma vez que o universo destes era de 8944508 eleitores, dos quais, 2588312 votaram no Partido Socialista).

Continuemos. Se olharmos para os resultados das últimas eleições para a Presidência da República, em 2006, das quais saiu vencedor Cavaco Silva, vemos que do universo de 9085339 eleitores, apenas 2773431 preferiram o candidato vencedor. Assim, ao contrário da percentagem vitoriosa de 50,54%, podemos dizer que o Presidente da República foi escolhido por 30,53% dos eleitores.

E, para terminar, seguindo a mesma metodologia, constatamos que no Referendo ao Aborto de 2007, e apesar de aqui sabermos que a abstenção atingiu recordes, o Sim ganhou com os votos de 25,34% dos eleitores nacionais.


Comentários:
a) ainda bem que estas contas não são feitas tendo em conta o número total da população, senão era ainda mais humilhante;

b) a “democracia portuguesa” (se é que se pode falar disso com estes números) está, podemos dizê-lo, em abstenção;

c) já se percebe porque é que os nossos campeões da democracia à gauche são tão veementemente contra o voto obrigatório (de resto, parece-me, a única maneira de assegurar a democracia como demos cracia, efectivamente!): se todos votassem até podia acontecer que a verdadeira maioria não os preferisse a eles e isso era trágico. Para eles, claro está!

d) a esta luz não se entendem tantas críticas ao sistema eleitoral da Segunda República: também esse, segundo os seus detractores, elegeu o Almirante Américo Tomaz em 1958 com 25% dos votos: para quem fez uma revolução e afins para mudar o sistema, estão demasiado parecidos para o meu gosto!

e) a democracia é, por definição e vocação, a ditadura da maioria. Ditadura essa renovada por actos eleitorais regulares, que sendo exercidos livremente, podem (e devem, muitas vezes) mudar os vencedores, nunca havendo lugar à efectiva tomada do poder por um grupo/facção/partido. Ou pelo menos é esta a teoria. Na prática “esclarecida” à portuguesa (de resto uma das “mais consolidadas, maduras, etc e etc” como ouvimos dizer diariamente) a democracia é o governo de todos por uma parte – sim -, mas não a parte maioritária: é o governo da maioria por uma minoria. Logo, em bom rigor, uma espécie de ditadura. Como? Muito simplesmente com filosofia e linguagem. Como? Também é simples: em vez da nossa democracia ser alicerçada no voto da maioria da população para isso habilitada (esse limite é intransponível pois todos vemos a idiotice de uma criança de um ano ser obrigada a votar, ou coisa parecida) a democracia em abstenção à portuguesa é alicerçada na voto da maioria dos que até se incomodam-e-não-vão-à-praia-ou-ao-shopping-ou-coçar-a-micose-ou-têm-um-primo-que-até-é-candidato o suficiente para se deslocarem à câmara de voto para decidir, tão só, o futuro colectivo do lugar onde fazem a vida…

f) estou perfeitamente consciente que assim acontece em grande parte das “democracias” por aí vigentes ,especialmente na Europa e na América onde a coisa é mais comum (as democracias africanas dos 90% de votos num partido fazem-nos suspirar pelos 30% do Professor Cavaco…). Mas também tenho consciência que em muitos lugares assim não é, e o voto é obrigatório, já que, mais do que um direito, é um dever: a “tirana” Suíça que tudo decide eleitoralmente ou o Brasil são casos em que a coisa acontece. E ao que parece as pessoas até gostam. Talvez seja porque, na realidade, contam. O que, convenhamos, não é de todo despiciendo…

g) para quem inventou e vive numa democracia tão fajuta (passe o brasileirismo) como esta (já para não falar da esquizofrenia latente do sistema semi-presidencialista, como gosto de lhe chamar: o Povo elege o parlamento com o seu voto; o parlamento - eleito pelo Povo, vamos devagar para se perceber - dá origem ao governo; e depois o Povo elege um tipo para controlar o parlamento e o governo que, portanto, ele próprio escolheu) já se calavam com as laudas à nossa democracia.

h) é certo que a democracia, por definição, e por influência derridiana, é sempre uma democracia por_vir, sempre a_vir. Só escusava era de ser assim abs_tença.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

36, Avenue Georges Mandel, Paris 16

36, Avenue Georges Mandel
Paris 16
Aristo, meu amor*

– Este é um pequeno presente de aniversário, eu sei, mas devo dizer-te que estou após oito anos e meio com – (…) – depois de tudo o que passámos, feliz por dizer-te do fundo do meu coração – orgulhosa de ti, amo-te de corpo e alma e só desejo que sintas o mesmo por mim –
Sinto-me privilegiada em ter alcançado o ponto mais alto de uma carreira difícil e de ter sido abençoada por Deus ao encontrar-te, tu que passaste, tal como eu pelo Inferno – alcançaste o topo e tivemo-nos um ao outro da maneira como somos.
Tenta, por favor, tenta, que permaneçamos juntos pois preciso do teu amor e do teu respeito para sempre.
Sou demasiado orgulhosa para o reconhecer, mas sabes que és o meu respirar, a minha cabeça, o meu orgulho e ternura – que se pudesses sentir o que me vai no coração, sentir-te-ias o homem mais forte e mais rico do mundo inteiro.
Esta não é a carta de uma criança, aqui tens uma mulher ferida, cansada e sofrida que te oferece os sentimentos mais frescos e juvenis que alguém jamais experimentou.
Não o esqueças nunca e sê sempre terno comigo como nesses dias e fazes-me sentir a Rainha do mundo – meu amor – preciso de afecto e de ternura.
Sou tua – faz de mim o que quiseres
A tua alma

Maria


* Esta carta foi enviada por Maria Callas a Aristóteles Onassis, faz hoje precisamente 40 anos. Apenas falta um pormenor: este foi o dia do casamento dele com Jacqueline Kennedy. Ainda cheia do amor e da esperança de Madama Butterfly, este é, afinal, o crepúsculo de um grande amor a fazer lembrar esta espantosa interpretação da Tosca, em Convent Garden, apenas 4 anos antes e a meses de abandonar a carreira para seguir o seu "Aristo". Gaita. Gaita. Gaita...!

** Devo à Rita Ferro e ao seu pronome possessivo esta descoberta. Obrigado, pois!

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Pessoas-bichos *

Já várias pessoas me conhecem a teoria (não-assente em qualquer base científica, como quase todas as minhas pseudo-teses) de que toda a gente tem cara de bicho.
A maior parte, cara de uma qualquer raça de cão (por favor, nunca repararam como o Mário Soares se assemelha a um bulldog??), alguns cara de réptil, outros de pássaro, outros ainda de peixe. Fisionomicamente, é-me fácil estabelecer comparações do género, sei lá bem porquê.

Claro que, depois, há o resto: a parte de dentro que, muitas vezes, nada tem que ver com o que os olhos vêem. Claro que, com frequência, uma pessoa-São Bernardo é-o a todos os níveis: olhar meigo, feitio pachorrento (se não lhe bulirem com os nervos), gestos ao rallenty. Ou uma pessoa-caniche (imagine-se o cabelo), com aquela forma de estar irrequieta, voz aguda e sempre a mil.

Mas há aqueles que não têm cara de nada e que aos poucos vamos descobrindo serem coisas. Bichos.

Há as pessoas-carraças, que não fazem bem a ninguém nem percebemos para que servem, perdoem-me os tais passarinhos que poisam nos touros e lhas comem do lombo, haverá com certeza algum alimento substituto; sugam o sangue (e o tutano, se puderem) dos outros até ficarem gordos e grandes e viscosos e nojentos sem que, infelizmente, se descubra qualquer Advantix (o Frontline já era, diz a F., e a F. sabe tudo, que me pôs a Petra fina que nem um alho) que lhes trate da saúde.
Há as pessoas-andorinhas. Aquelas que só vemos sazonalmente mas nos enchem a vida de Primavera sempre que aparecem. Que sabemos que não vão ficar muito tempo mas, enquanto ficam, constroem os ninhos bem próximos de nós e dão-nos o prazer da sua presença, enquanto não é hora de partir. E que, quando partem, é sempre com um até já, um até sempre. Sabemos que voltarão, para nos anunciar bom tempo.
Temos as pessoas-cavalos-brancos. As que, entrem onde entrarem, fazem virar cabeças. Pelo porte, pela inteligência que se lhes adivinha na graciosidade com que se movem. Doces e fortes ao mesmo tempo, são uns dos meus preferidos.
Encontram-se muitas pessoas-pavão, aquelas a quem apetece atingir com o jacto de uma mangueira, a ver se não perdem o ar enfadado e superior num "ai".
Há ainda as pessoas-leão (nada que ver com o signo), as que se enconstam às leoas e elas que vão à vida, que eles nasceram para reis da selva e limitam-se a dar a honra da sua existência.
Há as pessoas-cão, massa de que são feitos os amigos. Fiéis, honestos, puros. Dão o que têm e o que não têm para nos fazer felizes, adivinham-nos os pensamentos com o olhar, estão sempre prontos para nos acompanhar, não porque tem de ser mas porque lhes apetece (não lhes apetece outra coisa, de resto).
E as pessoas-gato, tembém há muitas dessas. Tenho gatos, toda a vida tive. Admiro-lhes a elegância, a maldade divertida, a independência aparente. Gosto de gatos; não como gosto de cães, mas gosto de gatos. Não aprecio, conquanto, pessoas-gato. Aquelas que se nos enroscam no colo quando precisam, mas vão caçar pássaros e estão dias sem aparecer, se restabelecidas. As que vêm com sorrisos e abraços e mimos porque têm necessidade de afecto, ou de comida, ou de carinho, mas debandam para outros colos, se estes corresponderem a algo que, na altura, lhes apeteça mais. As que tão depressa ronronam palavras doces como nos espetam uma unha, porque lhes tocámos numa parte do corpo onde não gostam de ser tocados. As que nos rosnam, se as abordamos quando não lhes apetece serem abordadas, para logo depois virem roçar-se-nos nas pernas, voltando tudo ao início.

Não, definitivamente não gosto de pessoas-gato.
Prefiro as carraças, ao menos já sei com o que conto.


Ana Andrade


* Gosto de pessoas-gato. Toda a vida gostei. Quer-me até parecer que grande parte dos meus amigos tem, de alguma maneira, alguma coisa de pessoa-gato. E acho que sempre amei pessoas-gato. Sempre me fascinaram no seu charme, na sua elegância, na sua inteligência, na sua docilidade, no seu orgulho, na sua fragilidade-nunca-aparente. Mas sem nunca quebrarem, sem nunca se renderem, sem nunca se submeterem. Isso atrai. Isso espicaça a vontade de descobrir o ponto que as faz ronronar, o ponto debaixo do queixo onde encostam a cabeça à nossa mão e se deixam levar. Como quando uma onda nos apanha e nos enrola para nos deixar exaustos na orla da praia. Sempre me agradaram as pessoas independentes, sempre admirei as pessoas que, nas piores dores do mundo, mesmo quando destruídas por dentro, mesmo quando estragadas, arranjam maneira de continuar. Arranjam maneira de seguir caminho. Sem queixumes, sem vitimizações, sem choraminguices (sou uma retroescavadora sentimental!). Sempre me irritaram os prantos, os ais, as desgraceiras, os ganidos. O que não quer dizer que as pessoas não tenham momentos de tristeza, momentos cinzentos e negros e doridos e sangrantes. Não. O que sempre me irritou foi aquela gente que não faz mais nada senão queixar-se, senão lamentar-se, para quem a vida é uma imensa sucessão de desastres e tragédias. Se o for que seja com um sorriso. Que seja de cabeça erguida como vela ao vento. Que a chuva nos apanhe de rosto erguido e nunca caídos em lamúrias no meio da lama. Gosto pois de pessoas-gato. Gosto do combate para conseguir alguma domesticação. Atrai-me o esforço de educação dos gatos. E das pessoas-gato, mesmo que pelo meio exista toda a transgressão das regras.


Só me faz impressão - e isso é a nossa ponte Ana, estavas a ver que nunca mais lá chegava, ah pois é! - as pessoas-gato-vadio. Destas não sei se gosto. Ou melhor: gosto, acho que não consigo não gostar, mas faz-me muita confusão o profundo desprezo que têm pelo outro. Uma pessoa-gato, por muito que vá caçar os seus pássaros, volta numa manhã para se enroscar ao nosso colo. E isso é bom! Isso reconforta. Isso até pode ter um nome: fidelidade. Melhor: lealdade. Agora as pessoas-gato-vadio não - nunca saberemos se algum dia voltarão, nunca saberemos se efectivamente gostam das nossas festas ou se apenas as querem enquanto não arranjam lugar melhor ou enquanto não partem. Partem, não porque queiram o seu espaço, mas porque nada as prende verdadeiramente a nada. Entendem esse desprendimento como sendo uma virtude, como sendo a tão famosa independência. Mas a independência é ter um lugar (seja ele qual ou onde for), mas ter um lugar. Mesmo que esse seja um lugar líquido como este, mesmo que seja uma khôra, é tê-lo. É desejá-lo. É encontrá-lo, de cada vez, como a primeira vez. Mas as pessoas-gato-vadio não o têm. Passam a vida a pular de árvore em árvore, comendo aqui e ali, dormindo aqui e acoli. Para, no fim de contas, acabarem por nada levar consigo. Acabando por nada (a)prender. Procuram nem sabem bem o quê, e quando chegam ao fim da caminhada olham para trás e só encontram um deserto. Sem nenhum tipo de construção. Nem de destruição. Apenas um vazio. Todas as suas paragens foram descartáveis. Chegam a um lugar, usam-no, e partem sem pensar muito sobre o assunto. Vivem ao minuto, sem memória, sem afectos, sem ligações. Nada levam consigo, devoram o futuro sem passado. E essas, às vezes, incomodam. E às vezes, magoam. Agora as gato? Venham elas!

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Rule Britannia

Muita gente tem andado à toa com a crescente-e-não-tão-recente crise financeira mundial (coisa em que nós, portugueses, podemos dar formação ao mundo visto que desde El-Rei D. Manuel I que a coisa tem habitado por cá com impressionante à vontade), e principalmente, com os termos com os quais a coisa é descrita: ele é desde a "crise do supprime americano" até àquilo a que chamam como "investimentos tóxicos", et cetera e et cetera... Ora os nossos amigos britânicos, aqueles com quem nos aliámos há mais tempo do que nos lembramos, aqueles contra os canhões de quem deveremos marchar - os grandessíssimos ladrões do nosso maravilhoso mapa cor-de-rosa (e depois o lobby gay só agora é que se faz notar... pois, pois...) -, esses mesmos, criaram uma simples explicação em oito minutos e quarenta e um segundos para aquilo que muita gente ao fim de meses ainda não percebeu muito bem (e a julgar pelas recentes medidas orçamentais do nosso mui alto e glorioso governo, e ao seu "fundo-de-arrendamento-nacionalizo-te-a-casa-para-aprenderes-a-pagar-as-prestações", também por lá a coisa ainda não foi muito bem apreendida...). Admirável! Admirável!




Deve ser por estas e por outras que todos nos lembramos de uma bela cantiga-hino, comum nos british films relativos ao período da 2ª Guerra Mundial, e normalmente cantada já com alguns litros de sangue no gin tónico: "The nations, not so blest as thee, / Must, in their turns, to tyrants fall; / While thou shalt flourish great and free, / The dread and envy of them all. / Rule, Britannia! rule the waves: / Britons never will be slaves."


P.S. Haverá mais algum povo que no seu "hino oficial" (God Save the Queen) e no seu "outro hino" (Rule Britannia) rogue pragas aos seus inimigos desejando-lhes desde "políticos confundidos" a "governos de tiranos"?! Admirável! Admirável! Rule Britannia! Rule!

E já agora: quando é que os tão maravilhosos (ou não) e louvados (ou não) e imbatíveis (ou não) Gato Fedorento começam a fazer umas coisinhas fantásticas como esta? Podem começar a aprender tentando chegar aos calcanhares dos Contemporâneos...

terça-feira, 14 de outubro de 2008

domingo, 12 de outubro de 2008

Notes for Canto CXX

I have tried to write Paradise

Do not move
Let the wind speak
that is paradise.


Let the Gods forgive what I
have made

Let those I love try to forgive
what I have made.


Ezra Pound

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Paixão

Por tua causa um dia quis morrer. Num dia único, singular, absolutamente único, quis mesmo morrer. Metodicamente, ou talvez não, encostei-me a uma parede e escorreguei, deixando-me partir. Ao tocar o chão entreguei-me à queda. Deixei-me cair sem parar e fiquei, desatento, a deixar o ar escapar-me do peito, o fôlego abrandar, já sem ouvir o abrandar dos batimentos cardíacos, já esquecido de mim. E morri.

- Quando acordei só havia ruído. Só barulho. Só confusão. Tinha um martelo pneumático em-permanência a esburacar-me o cérebro. Não conseguia sequer ouvir-me a mim mesmo, não conseguia sequer pensar uma coisa simples como “azul”. Também não conseguia ouvir o coração, mas sabia estar vivo, de alguma maneira, vivo. Insuportavelmente vivo. O mundo todo me parecia estar em slow motion, as vozes chegavam-me com um atraso incomensurável, e eu, ali estava, de alguma maneira, ali estava, a tentar responder, a tentar, ali. Três dias assim permaneci, três dias ausente, três dias chorei infindavelmente, por toda a vida, para toda a vida. Não te sei dizer quantos foram os ataques de pânico, quantos foram os gemidos, os rangidos de dentes, quantas foram as mortes. Apenas que foram muitos, muitos, muitas. Não te sei dizer o quanto me doía o corpo, o quanto me encarquilharam as mãos, o quanto escavei a noite. Nem sequer te sei dizer, nem sequer te sei contar o quanto a voz nos pode doer, o quanto ela pode sangrar, rouca, de tanto gemer. De tanto gemer. De tanto se afogar.

Sei sim que ao fim desse tempo – três dias, três bíblicos dias – uma nova pele me cobria. Ao fim desse tempo de escuridão, voltei a habituar-me à luz, devagar primeiro, devagarinho depois. Vislumbrei uma claridade, levantei a cabeça, levantei-me, sentei-me e pensei. Como da primeira vez, como o primeiro pensamento, como um primeiro pensamento na vida, pensei. Analisei. Pesei. Ponderei. Resolvi. Tomei decisões. Tomei todas as decisões. Pela vida e para a vida. Uma eternidade de decisões, de resoluções graves, tratados assinados, armistícios plenos e incondicionais. Lambi as feridas. Sarei-me.

De todo esse tempo, de toda essa dor, a mais funda, a mais aguda que alguma vez pude sentir – surda de tão aguda, cortante de tão desesperante, sem-doer doendo, daquelas que nos fazem desmaiar porque o cérebro já não consegue aguentar mais e é demais – apenas guardo uma lembrança salvífica, apenas uma voz me chegava, apenas uma imagem me agarrou os olhos salgados e ardentes: Tu. Tu.Tu.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Grace


I'm on my knees
Only memories
Are left for me to hold

Don't know how
But I'll get by
Slowly pull myself together
(I'll get through this)

There's no escape
So keep me safe
This feels so unreal

Nothing comes easily
Fill this empty space
Nothing is like it seems
Turn my grief to grace


I feel the cold
Loneliness unfold
Like from another world

Come what may
I won't fade away
But I know I might change

Nothing comes easily
Fill this empty space
Nothing is like it was
Turn my grief to grace


Nothing comes easily
Where do I begin?
Nothing can bring me peace
I've lost everything
I just want to feel your embrace

I love you,I love you,I love you...

Kate Havnevik



Grace - Kate Havnevik

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Capri, c'est fini (?)

Nous n'irons plus jamais, ou tu m'as dit je t'aime
Nous n'irons plus jamais, tu viens de décider
Nous n'irons plus jamais, ce soir c'est plus la peine
Nous n'irons plus jamais, comme les autres années

Capri, c'est fini
Et dire que c'était la ville de mon premier amour
Capri, c'est fini
Je ne crois pas que j'y retournerai un jour

Nous n'irons plus jamais ou tu m'as dit je t'aime
Nous n'irons plus jamais, comme les autres années
Parfois je voudrais bien, te dire recommencons
Mais je perds le courage, sachant que tu diras non

Capri, c'est fini
Et dire que c'était la ville de mon premier amour
Capri, c'est fini
Je ne crois pas que j'y retournerai un jour

Nous n'irons plus jamais, mais je me souviendrais
Du premier rendez-vous que tu m'avais donné
Nous n'irons plus jamais comme les autres années
Nous n'irons plus jamais, plus jamais, plus jamais

Capri, c'est fini
Et dire que c'était la ville de mon premier amour,
Capri, c'est fini
Je ne crois pas que j'y retournerai un jour.

Oh Capri, oh c'est fini
Et dire que c'était la ville de mon premier amour
Capri, c'est fini
Je ne crois pas que j'y retournerai un jour
Capri, oh c'est fini
Et dire que c'était la ville de mon premier amour
Capri, c'est fini
Je ne crois pas que j'y retournerai un jour

Hervé Villard



Capri cest fini - Herve Villard

Porque, ao contrário de Hervé Villard e do velho ditado, devemos voltar sempre aos lugares onde fomos felizes. Onde amámos e fomos amados. Onde amámos e não fomos amados.


Porque devemos sempre voltar aos lugares onde rimos e onde chorámos. São esses os lugares do crescimento, e, de cada vez que voltarmos, faremos mais uma marca, mais um risco, como aqueles traços a giz que se fazem nas paredes para marcar o crescimento das crianças.


A cada regresso, uma viagem. Uma viagem por dentro, às catacumbas do ser. A cada regresso, a memória, ah a memória! Dos tempos felizes. Do tempo das cerejas. E os cheiros de volta, os arrepios cá dentro, a satisfação de um sorriso… Sim, devemos voltar! Sempre.


Em cada retorno reinventar a felicidade. Reinventar o tempo. Ter sempre presente o trabalho de Penélope: fiar e desfiar, fiar e desfiar, fiar e desfiar. A cada momento, a cada regresso, reinventar o fio, reinventar a teia, a memória. Tecê-la e sacudir-lhe o pó: avivar as cores e desatar-lhe os nós. Lavá-la e estendê-la ao sol a corar.


Depois enrolá-la à nossa volta, como um abafo no tempo frio. Apertá-la e sentir-lhe o cheiro, sentir-lhe o toque. E dela fazer uma nova pele. E partir. De novo.



P.S. Mas lá que a música é bonita, lá isso é! Já o videoclip... Sim já os faziam nesta época, mas ainda com ligeiríssimas falhas... aliás, não admira que ele nunca mais queira voltar a Capri, embora a rapariga - coitadinha - tenha poucas culpas no cartório...(Ora vede)

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Time has come today *

"Time waits for no man. Time heals all wounds. All any of us can wants, is more time. Time to stand up. Time to grow up. Time to let go." Meredith Grey Voice Over, “Time has come today”, Grey’s Anatomy



De um momento para o outro a vida muda para sempre. De um momento para o outro a nossa vida muda para sempre. Umas vezes é num mero instante; noutras demora anos a acontecer. Nunca podemos estar seguros de nada, nunca podemos estar seguros de continuar: a ser felizes, a ser infelizes, a chorar, a rir, a esperar, a sentir, a respirar… Muitas vezes nem podemos mesmo estar seguros de continuar. De continuar a continuar. Piscamos os olhos e zás: a vida tal como a conhecíamos muda, e o que é pior, o que mais nos angustia, muda sempre para sempre, sem volta a dar-lhe, sem volta à ré porque percebemos mal, porque nos enganámos, porque estávamos bem como estávamos, porque gostaríamos de não ter feito o que fizemos, porque nos arrependemos e queremos emendar a mão. Pôr as coisas certas. Refazer. Porque queremos dizer tudo o que não dissemos. Porque queremos calar tudo o que não calámos. Acima de tudo queremos que tudo fique no seu lugar. Ou pelo menos no lugar onde achamos que tudo deve ficar. Mas não. O tempo dá-nos um coice e lá vamos nós na espiral. Queremos parar e não podemos, somos empurrados para a frente e temos de continuar, mesmo quando tudo o que queríamos era parar, era sentarmo-nos numa pedra do caminho e ficarmos ali um pouco. A pensar. A digerir o choque. A chorar. A digerir o tempo e as suas ingerências na nossa vida. O tempo e os seus sustos, os seus sobressaltos. Mas não podemos. Queremos parar o mundo, suspender a rotação terrestre. Queremos dar-nos tempo. Queremos ter tempo para reagir, para pensar e não podemos. Temos de continuar. Com a cabeça ainda confusa da pancada, temos de continuar. A sangrar as entranhas, a esvairmo-nos de dor roxa, mas temos de continuar. É preciso dizem-nos. Il faut!





Mas às vezes recusamo-nos a seguir. Há alturas em que recusamos, mesmo, seguir. Paramos, fincamos os pés na terra e ali ficamos. Arrastamo-nos para debaixo da casa e esperamos. Apenas queremos um canto que nos agarre e que nos esconda. Apenas queremos enrolar-nos. Sem testemunhas. Sem abraços. Sem conforto. Sem consolo. Apenas um canto onde nos sintamos assépticos. Onde tudo seja branco e não nos force, não nos obrigue a desviar o pensamento do roxo. Um lugar onde possamos contemplar o vazio. Onde possamos quedar-nos. Onde possamos ficar. Só, ficar. Mais nada.





Quando alguém morre, quando alguém a quem amamos morre o que mais custa é o sempre. Ou se quisermos, o nunca. Mesmo que acreditemos numa outra coisa ou numa outra vida ou num outro mundo ou numa outra oportunidade, o que mais custa é o nunca mais. Para sempre, nunca mais. O nunca mais ser igual. O nunca mais ser assim. O nunca mais termos aquele olhar, aquela voz, aquele sorriso, aquelas mãos, aquele cheiro. É o nunca mais podermos partilhar. É estarmos avassaladoramente mais sozinhos. Mas solitários. Absolutamente sozinhos, como se todo o mundo desaparecesse num gigantesco buraco. Como se só a nossa voz ecoasse pelas planícies, subisse às montanhas, penetrasse os mais profundos mares. E não encontrasse resposta. E não houvesse mais ninguém. E só restássemos nós. Pior: apenas eu. Só eu. .





Deve ser a isso que chamam luto. Fazer o luto. É como se o tempo, se a vida, se a normalidade, todos tivessem um ritmo diferente do nosso. É como se estivéssemos em slow motion. O mundo todo acertado, o mundo todo a tempo, e nós atrasados, e nós mais devagar, nós a movermo-nos mais devagar, a comermos mais devagar, a falarmos mais devagar. Nós desfasados. Como se aquela morte, aquela falta no mundo tivesse provocado um desarranjo, tivesse provocado um qualquer bug que só a nós nos afecta. Talvez seja por isso que nessas alturas sentimos a pena. Vemo-la nos olhos dos que connosco se cruzam. Sentimos-lhe o cheiro. Sentimos-lhe o toque. E isso torna a dor ainda mais dor. Isso torna o desespero ainda mais fundo. Isso humilha-nos, magoa-nos, expõe-nos ainda mais. E força-nos a um recuo, obriga-nos a um maior fechamento. Daí que choremos alto. Para encher os espaços. Para preencher. Para colorir os espaços em branco. Para soprar uma bolha que nos defenda das facas. Que nos abrigue. Que nos esconda.





Porque nos sentimos pequenos. Porque nos sentimos meninos com medo do papão. Porque nos sentimos impotentes. Incapazes de salvar. Incapazes de resgatar. De sermos heróis. De sermos tudo o que prometemos. De sermos um milagre. Sentimo-nos feridos, caídos do ninho, incapazes de regressar. Ao lugar. Ao nosso lugar. Ao lugar onde tudo antes fazia sentido e agora já não faz. E é isso que é preciso. É fazer sentido. É preciso fazer sentido. É preciso que compreendamos o que se passa. E para isso nem é preciso morrer alguém! Muitas são as formas pelas quais podemos ficar estragados! (Gosto desta expressão, ficar estragado. Aprendi-a há pouco tempo, mas entrou logo para o coração. Porque é certeira. Porque diz mais do que parece. Porque só “fica estragado” o que “passa do tempo”, o “que está fora do tempo”, o que é “atropelado pelo tempo”. Porque só fica estragado o que “era a tempo”, o que “estava a tempo”. E isso é bom. Isso consola. Isso ajuda a crescer.)



Até que um dia estamos prontos. Até que um dia podemos recomeçar, podemos apanhar de novo o comboio, podemos seguir ao ritmo normal. Um dia a rotação da terra deixa de provocar tonturas. E seguimos. Estragados, mas seguimos. Aprendendo a viver sem um bocado. Arranjando maneira de continuar. Estragados, mas vivos. Reconciliados com o tempo. Com uma nova cicatriz, mas vivos, Reconciliados connosco. Seguimos. Levantamo-nos do chão, sacudimos a poeira, passamos a mão pelo cabelo. Acariciamos a cicatriz, medimos-lhe o tamanho, apreciamos-lhe o tom. Sorrimos. Estamos prontos. Estamos, de novo, prontos. Como novos. Como novos.



* Grey’s Anatomy é, seguramente, uma das melhores séries de sempre. Uma autêntica obra de arte. Mais do que a “típica série sobre médicos e hospitais”, é uma série sobre a vida e os seus soluços. Sobre a diversidade dos dias. Sobre as cicatrizes que vamos acumulando. Tem, para mim, uma imagem de marca: o magnífico guião. É, com toda a certeza, uma das séries mais bem escritas que já vi. Tem diálogos que deveriam passar a constar nas selectas literárias. E alia isso a uma história equilibrada e rica, interpretações de suster a respiração, um décor sóbrio e directo, uma banda sonora eficaz e muito interessante. Mas os diálogos… ui! São de tirar o fôlego. Este episódio que aqui deixo é disso um exemplo. Desde que o vi que não me consigo separar dele. Tudo nele é necessário, nada é excesso, nada está a mais. Perfeito. Absolutamente perfeito. Absolutamente triste, também. Mas daquela tristeza feliz, aquela tristeza bonita da qual já aqui falei. Uma tristeza catártica. Como uma crise de choro (e se há coisa que esta série me provoca são crises de choro e soluços a esganar-me a garganta e gargalhadas e sorrisos estampados na cara) que alivia. Perfeita.

domingo, 5 de outubro de 2008

Da Res Publica


Todos os que me conhecem sabem que desde sempre vivi com a minha Madrinha e com os meus Tios-bisavós (seus pais). Na velha casa da quinta onde quase nasci, e onde o meu Tio e a minha Madrinha efectivamente nasceram, sempre houve um curioso entendimento da questão do regime.

Por um lado havia (e há) uma profunda reverência pela figura de um Tio do meu Tio, o Conselheiro José Baião. Figura que sempre me fascinou, do alto do seu retrato de parede (a maior fotografia-retrato cá de casa), onde um garboso e aprumado homem de meia-idade nos interpela o olhar forçando-nos à contemplação, o Tio-Conselheiro (nome pelo qual, reverente e orgulhosamente toda a família sempre se referiu - e refere - a ele) foi um homem do seu tempo, que hoje diríamos ser um homem doutro tempo. Monárquico convicto e professo, foi um político activo nos últimos 30 anos da Monarquia Constitucional. Deputado em várias legislaturas sempre que os Regeneradores se encontravam no poder, foi também Governador Civil de Santarém, Faro e Leiria, bem com Chefe dos Hospitais Civis de Lisboa. Por tudo isso teve a honra de ser agraciado com a Carta de Conselheiro de El-Rei D. Carlos I, facto que sempre encheu de orgulho toda a família, como ainda hoje se pode ver nas várias casas dos seus sobrinhos (já que ele nunca teve descendência própria por ser igualmente um convicto celibatário), onde se exibem as várias cópias da sua fotografia ostentando a Farda de Conselheiro. Era um homem à antiga portuguesa, crente nos valores do Portugal Liberal, na rectidão, na honestidade, na honra, na palavra dada, na força das convicções. Por isso abandonou a capital aquando da implantação da República. Recolheu à sua casa natal em solo alvaiazerense e lá permaneceu nos quase 20 anos em que ainda viveu, pertencendo à oposição monárquica e só transigindo envolver-se politicamente se em causa estivessem os interesses dos seus conterrâneos.


Por outro lado, sobre o velho cofre onde antigamente se guardavam os maiores valores, e hoje repousam os documentos-memória da Casa, sempre encontrei um busto em gesso da República com a inscrição do lema do Novo Regime – Ordem e Trabalho – e a data da sua implantação – 5-10-1910. Nunca o busto saiu do seu lugar, e por mim, nunca de lá sairá. Fruto da militância republicana do Pai do meu Tio, o Engenheiro José Baião (que, começando por ser Presidente da Câmara Municipal de Ferreira do Zêzere na Monarquia Constitucional, foi-o também com a Primeira República e, mais tarde, com a Segunda República/Estado Novo), é uma bela peça, esteticamente bela e harmoniosa, a fazer lembrar um tempo em que se acreditou que era efectivamente possível reformar a ideia de Portugal. E só isso já deveria assegurar-lhe o sossego do lugar, pois não é pouco!

Estribado nestas duas realidades, estes dois lugares tão distantes e tão próximos (estas duas khôras, pois então), sempre a questão da natureza do regime (monárquica ou republicana) esteve presente nas conversas, nas memórias e nas vivências da casa. Isto apesar de, no meu tempo, já não restar qualquer republicano na casa – aliás, parece-me que cá em casa apenas o Tio José foi algum dia republicano. A Tia Beatriz, sua mulher, nunca deixou a sua fiel crença monárquica, católica e tradicional, manifesta nos inúmeros livros religiosos e missais que, ainda hoje, povoam a casa. A Tia Maria do Carmo, sua filha, nunca deixou os valores da Mãe (malgré o marido ateu, o Tio Jorge) que a levavam a visitar as Igrejas na Páscoa, percorrendo o Chiado de cima a baixo sem descanso, parando à porta dos Duques de Bragança para saber “se Suas Altezas estavam em Lisboa e se os Meninos estavam bonzinhos”! O meu Tio António, praticamente nascido com a República (1909-1986), foi sempre um monárquico condescendente, marialva e tradicionalista, que já depois da Revolução dos Cravos apenas votava PPM. Por isso, o dia de hoje, 5 de Outubro, foi sempre vivido com manifesta indiferença, ou quanto muito, recatado pesar. Aliás, a primeira lembrança que tenho do dia é a de estar em frente à televisão a ver uma cerimónia povoada de gente muito velha, que celebrava algo a que, à minha volta, ninguém parecia ligar muito. Excepto, talvez, a “bela senhora” sobre o cofre no escritório.

Talvez seja por isso, mas não só, que ao começar a ouvir falar na celebração do Centenário da República, isso me cause alguma estranheza. Começando por uma questão, não-só-mas-também estética: se há coisa que o regime republicano não percebe é de estética e de imaginário. Por um lado a escolha das cores da actual bandeira nacional seria meramente triste, se não fosse fruto de uma comissão de sábios artistas. E assim sendo, é uma tragédia. A escolha de duas cores conflituantes (o verde que absorve a luz e o vermelho que a reflecte) é algo tão inenarrável que se pensaria apenas fruto da ignorância. Mas não é. E esquece e abandona a tradição do branco como cor fundamental da bandeira que vinha dos tempos da fundação. E do azul: do que significava um regime liberal, mas também do já presente na bandeira de D. Afonso Henriques, já para não falar na óbvia referência à vocação oceânica que teceu e tece (cada vez mais em tempos de “lusofonias” e “acordos ortográficos” com os “lusófonos ultramarinos”) o destino disto a que se chamou Portugal. Mas sobre isso Pessoa, melhor do que qualquer outro, sentiu e escreveu o que havia a dizer sobre o assunto:

« (...) E o regimen (a república) está, na verdade, expresso naquele ignóbil trapo que, imposto por uma reduzidíssima minoria de esfarrapados mentais, nos serve de bandeira nacional - trapo contrário à heráldica e à estética, porque duas cores se justapõem sem intervenção de um metal e porque é a mais feia coisa que se pode inventar em cor. Está ali contudo a alma do republicanismo português - o encarnado do sangue que derramaram e fizeram derramar, o verde da erva de que, por direito natural, devem alimentar-se. (...)»

"Da República" de Fernando Pessoa, Editora Ática, Lisboa, 1978

Por outro lado o imaginário republicano é tão pobre que é confrangedor; nenhuma criança no seu juízo perfeito diz querer ser “presidente da república”: quer sempre ser “rei” ou “rainha”, de preferência “príncipe” ou “princesa”. E isto não é uma simples questão de falta de hábito, de tradição, conto de fadas, ou simples inculcação cultural. O imaginário republicano é árido e seco, falho de energia transformadora, falho de garra e de arrojo: é uma balela entediante, tão entediante quanto a sua obsessão pela laicidade absoluta, pela igualdade tout cour, ou pelos benefícios da eleição de uma figura – o Chefe de Estado – que se quer apenas simbólica, apenas unificadora, apenas motivadora.

A figura de um Rei, do pior deles, nunca será comparável à de um Presidente da República. Com óbvio prejuízo do segundo. Um Rei é educado para isso desde que nasce, é educado para encarnar os valores da sua nação (sejam eles quais forem), para a defender acima de tudo, dando a sua vida – se preciso for – pelo seu povo. Toda a sua educação visa que ele conheça os seus súbditos melhor do que a si mesmo, toda a sua preparação visa o futuro, o prestígio, a coragem, a força do seu país. Ele deve ser um símbolo vivo da unidade por entre a diversidade de cada um dos seus súbditos; ele é o primus inter pares, uma referência para congregar em tempos de crise, uma fonte de diversidade em tempos de prosperidade. Não é menosprezável a importância do Rei para manter a unidade na diversidade belga. Muito menos é menosprezável a importância capital da Casa de Windsor na resistência britânica (e mundial) às tropas do Eixo, já para não falar nessa maravilhosa invenção, fonte de progresso, paz e entendimento entre povos tão diferentes, que é a Commonwealth. E apenas para lembrar o exemplo que mais próximo nos toca, todos sabemos o banho de sangue que seria a nossa vizinha Espanha sem a força, a inteligência, a sabedoria e a coragem da Casa de Bourbon a promover o entendimento, a dirigir a transição para a democracia, a unir o país das várias nações e das várias línguas, nem sempre amigas, nem sempre amigáveis, nem sempre vizinhas.

Um Presidente da República, por definição, deve ser um mero funcionário. Um mero burocrata ao serviço da coisa pública (a res publica, pois então). Sem simbolismos, sem regalias, sem famílias, sem privilégios. “O vizinho do 3º esquerdo” que, por acaso, por fazer parte de um corpo político, de um partido, de uma facção, é eleito por período curto para exercer, de maneira intercalar, de maneira transitória e rápida, a chefia simbólica do Estado. Tudo o resto é excesso. O Presidente da República é aquele que (honra seja feita a Teófilo Braga nesse ponto) vai para o trabalho pelos seus próprios meios, paga as suas despesas com o seu soldo, cumpre e retira-se sem mordomias, sem excepcionalidade. É por isto, por esta pobreza simbólica republicana ser insuportável, que o que hoje vamos tendo, cada vez mais, são presidentes-reis, presidentes que se comportam como a nenhum rei da nossa Europa seria permitido. Presidentes que são tratados pelo cargo já depois de abandonarem funções (não será isso uma concessão aos títulos de nobreza?), presidentes que recebem reformas exorbitantes e têm “direitos e regalias cativos e vitalícios” (seja isso o que for dentro do espírito republicano), presidentes que distribuem comendas para cima e para baixo (Foge cão que te fazem barão! - Mas para onde, se me fazem visconde?!, já o diria, e que bem, o visconde (!!!) de Almeida Garrett), presidentes que têm “famílias presidenciais”, presidentes que podem dissolver assembleias eleitas pelo povo sem justificação de maior! Poderá alguém justificar isso como sendo consentâneo com o, dito, espírito republicano? Configurará isto aquilo que todos proclamam como sendo a dita ética republicana (whatever it might be)?


Eu, à cópia, prefiro sempre o original. É sempre mais fácil criar e recriar o novo, inventar o futuro a partir do original do que da cópia (e no caso da nossa República, uma cópia rasca e falsificada). Por isso acho engraçado que se comemore a implantação de um regime que (como a História começa timidamente a apontar) “seria repugnante para os dias de hoje” – quem o disse foi o historiador Rui Ramos, autor de uma biografia do Rei D. Carlos I, numa conferência na Universidade de Lisboa há 3 dias atrás! Defendeu ele que o fim da monarquia representou "um enorme recuo a nível democrático para Portugal” e que aquilo que se diz hoje da implantação da República "é o mesmo que dizer que o Estado Novo foi um tempo de liberdade e que a PIDE foi um grupo de rapazes simpáticos”. Porque o que a ideologia dominante (para usar uma expressão mais marxista do que gostaria, mas contudo, certeira) não conta, esconde e esquece é que o Partido Republicano Português, nas urnas, pela via legal, nunca ganharia qualquer eleição. Tinha, na melhor das suas votações, à volta de 10% dos votos expressos, sendo que a esmagadora maioria desses votos se concentravam nos círculos de Lisboa, Porto e Setúbal (onde a população operária, mais permeável ao populismo e ao boato republicano, se concentrava), não tendo, por isso, qualquer implantação territorial digna de registo. A implantação da República é tão ridícula e anti-democrática em 1910, quanto seria hoje a implantação de uma república popular dirigida pelo PCP, de uma república trotskista e fracturante (seja lá isso o que for) dirigida pelo Bloco de Esquerda.

Relembre-se também, porque é preciso, que a par das “revolucionárias” leis do divórcio e da separação do Estado e da Igreja (aliás, hoje sabemo-lo, esta última já em preparação pelos últimos governos fiéis a D. Manuel II – o qual, inclusive, havia promovido um estudo para averiguar e melhorar as condições de vida dos (ditos) “camponeses” e “operários” portugueses (whatever it might be) feito por especialistas ligados ao então Partido Socialista, o que mostra como um Rei, quando é preciso, sabe e consegue rodear-se até daqueles que o combatem, para o bem da res publica, dos seus súbditos -, a República promoveu de imediato leis eleitorais que restringiram o direito de voto (que havia sido grandemente alargado pelo “ditador” João Franco), mostrando o seu medo das urnas, da democracia. Interessante é verificar o caso do sufrágio feminino: perante o caso de Carolina Beatriz Ângelo que se apresentou a votar em 1911 uma vez que preenchia os requisitos legais – chefes de família que soubessem ler e escrever (ela era médica, mãe e viúva) – os nossos grandes e esclarecidos “chefes revolucionários republicanos” apressaram-se a modificar a lei de modo a apenas ser elegível para o sufrágio o sexo masculino. Mais interessante ainda é saber que o primeiro decreto a consignar o direito de voto às mulheres, ainda que com grandes limitações, é datado de Maio de 1931, ou seja, em plena Ditadura Militar e já com grande parte da nomenclatura do futuro Estado Novo no governo!...

Comemoramos assim hoje a implantação de um regime controlado, primeiro pelo Partido Republicano Português, depois pelo seu sucedâneo Partido Democrático, ou seja, a implantação de um regime, na prática de partido único, sucedendo a quase 100 anos de multipartidarismo (de resto percebe-se pouco o porquê de tanto espanto com a Ditadura Militar e o posterior Estado Novo - nada mais familiar ao ambiente republicano do que um único partido, de facto e de jure, do que uma "união nacional"). Partido único esse que nem se coibiu de ter uma espécie de guarda pretoriana para o defender (a denominada , a partir de então, Guarda Nacional Republicana), e que não se incomodou em eliminar – fisicamente – os seus opositores e/ou os seus heróis fundadores, como aconteceu (por exemplo) na celebremente triste e sombria Noite Sangrenta! Um regime que em 16 anos de vida teve 8 Presidentes e 44 governos (!!!), um dos quais nem teve tempo de tomar posse (se uma justificação para a implantação era a “instabilidade governativa” da Monarquia Constitucional, registe-se que nos 19 anos de reinado de D. Carlos I o país conheceu 10 governos, e mesmo nos 2 anos de D. Manuel, já sob forte agitação e propaganda republicana, 6 governos!). Um regime que matou dois Chefes de Estado Portugueses: D. Carlos I morto por terroristas carbonários, republicanos e maçons (como as recentes obras publicadas a propósito do centenário do Regicídio claramente demonstram) e Sidónio Pais, o “Presidente-Rei” de Pessoa - morto fisicamente na Estação do Rossio (ao que si diz, por coincidência, por outro homem ligado à Maçonaria) e morto intelectualmente pela propaganda vil e mentirosa, apelidando de "ditador", o primeiro governante a introduzir de facto o sufrágio universal (masculino) em Portugal, o primeiro a ser eleito segundo esse mesmo sistema, coisa logo abolida após a sua morte. Um regime que substituiu a influência histórica da Igreja Católica pela influência secreta e silenciosa da Maçonaria, como tal muito menos mensurável, muito menos controlável, muito mais perigosa e corrosiva da democracia (por implantar).

Comemoramos hoje um regime que nos força a gastar mais do dobro do que os nossos vizinhos espanhóis gastam com a Chefia do Estado! Sendo que eles gastam-no com os 4 membros subvencionados pelo erário público (os Reis e os Príncipes das Astúrias), como todos sabemos altamente treinados e preparados para as suas funções públicas, e ainda levam o bónus de terem os outros membros da Família real a ajudar à representação do Estado junto dos cidadãos. Já nós, portugueses e “republicanos”, gastamo-lo para termos um casal (em bom rigor republicano, da dita ética republicana (whatever it might be) apenas deveríamos ter um Presidente que comparecesse sozinho às suas solicitações de agenda) que não sabe muito bem o que anda ali a fazer, que passa o mandato todo a aprender a comportar-se, que dá barraca na maior parte das vezes e que, portanto, desprestigia o país dentro e fora de portas. Coisa aliás comum: tirando as repúblicas que têm presidentes-reis (como a francesa, americana, e mais recentemente a Rússia, por exemplo), dos outros chefes de estado não reza a história, ninguém sabe como se chamam nem o que fazem, tal é a irrelevância que têm. (Quem conseguir dizer-me o nome do Presidente da Alemanha – só para citar um exemplo de um dos grandes europeus - leva um presente, juro!) Coisa que, num mundo globalizado e sempre em mudança, num mundo onde a imagem e o prestígio – agora chama-se “marca” a tudo, inclusive à imagem de um país no estrangeiro – cada vez têm maior importância, é mais um factor de atraso e de apagamento de Portugal no mundo.


Bastará pensar nos países mais desenvolvidos do mundo (em termos económicos e sociais e culturais) para obviarmos: a esmagadora maioria são monarquias. Japão, Suécia, Noruega, Reino Unido, Luxemburgo, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Holanda, todos “padecem” dessa grave falha – para os republicanos – que é “não serem repúblicas” e permanecerem “presos ao passado”, a um regime “antiquado e anquilosado”. Esta é aliás, uma concepção que merece alguma atenção: a ideologia dominante republicana é, toda ela, herdeira das concepções positivistas e darwinistas do mundo, logo de uma concepção de mundo marcada pela fatalidade de uma espécie de destino, um sentido para a história, um destino para a humanidade, por etapas, sem saltos ou interrupções (já para não falar das hegeliano-marxistas onde isso é ainda mais óbvio). Uma concepção da história que, esquecendo a própria história, a sua riqueza e diversidade, os seus ensinamentos, pensa o mundo como uma evolução unicamente rumo aos seus próprios postulados e desejos. Assim a humanidade caminharia para a república (como se isso fosse um objectivo per si), caminharia para o conhecimento total e puro (positivismo), caminharia para a liberdade dos povos de maneira constitucional como manifestação do Espírito (Hegel), caminharia para o fim da luta de classes (whatever it might be) e para a ditadura do proletariado (Marx), caminharia para a sobrevivência apenas dos mais fortes e mais bem preparados (Darwin), caminharia para a dominação dos povos inferiores pela raça ariana e para o Dritte Reich (Hitler), enfim: sempre o mesmo gesto, sempre o mesmo movimento de apreensão da realidade pelos delírios próprios, sempre a mesma linha ininterrupta de curto-circuito sem falhas, sem dúvidas, sem limites. Um totalitarismo, uma violência, portanto. Tanto mais limitado quanto, sabemo-lo se ouvirmos a história, no caso do regime (aquele que aqui e agora interessa) nunca a história mostrou a suposta superioridade republicana face ao governo em monarquia. A história, quanto muito mostra que um regime sucedeu ao outro consoante os interesses dos povos, no momento, e que, quanto muito (pensando nos exemplos gregos, romanos, franceses ou mesmo hispânicos) foi a República que acabou sempre preterida face à Monarquia. Se houvesse um sentido, diria, era o contrário. Mas como não acredito nisso, não vou apologizar delírios fáceis e simplistas. Prefiro olhar para o aqui e agora e escolher. E aqui e agora as monarquias vigentes causam-me muita mais inveja (porque infinitamente mais democráticas, mais perfeitas) que as repúblicas. Sem sombra de dúvida!

Comemorar o 5 de Outubro? Sim, talvez… se for o de 1143 no qual terá sido assinado o Tratado de Zamora, onde a soberania portuguesa foi reconhecida por D. Afonso VII, Rei de Leão e Castela, o Imperador. E mesmo esse, com o rumo que ambos os parceiros ibéricos levam, enfim… pouco apetece comemorar!

sábado, 4 de outubro de 2008

Happiness *

It seems the things I've wanted in
My life I've never had.
So it's no surprise that living
Only leaves me sad.

Happiness, where are you?
I've searched so long for you.
Happiness, what are you?
I haven't got a clue.
Happiness, why do you have to stay
So far away... from me?

When I'm in despair and life has
Turned into a mess,
I know that I don't dare to end my
Search for happiness.


Happiness, where are you?
I've searched so long for you.
Happiness, what are you?
I haven't got a clue.
Happiness, why do you have to stay
So far away... from me?

Happiness, sometimes I think
I see you from afar.
When I run to catch you, though,
That's just not where you are.

Happiness, you know I'll get a hold of
You some way.
Until I do, you know I'll keep on
Searching every day.


Happiness, where are you?
I've searched so long for you.
Happiness, what are you?
I haven't got a clue.
Happiness, why do you have to stay
So far away... from me?

Gonna find it, gonna find it,
Gonna find my happiness.
Gonna find it, gonna find it,
Gonna find my happiness.


When I'm in despair and life has
Turned into a mess - gonna find it -
I know that I don't dare to end my
Search for happiness - gonna find my...

Happiness, where are you?
I'm gonna get to you.
Happiness, what are you?
I'll know before I'm through.
Happiness, you know you just can't stay
So far away... from me.

Gonna find my - Happiness where are you?
Gonna find it - I'm gonna get to you.
Gonna find my - Happiness what are you?
Gonna find it - I'll know before I'm through

Michael Stipe With Rain Phoenix (words by Eytan Mirsky)


Happiness - Michael Stipe and Rain Phoenix

* Aconteceu-me esta canção. Volta não vira cá vem ela à memória e hoje lá me decidi a partir (na quase hercúlea) busca pelos mundos virtuais. Procurava algum registo (que não encontrei) da fabulosa e i-n-e-s-q-u-e-c-í-v-e-l interpretação de Jane Adams (a magnífica "Joy Jordan", the saddest Joy in the all world!) no - não menos - genial Happiness de Todd Solondz. Um filme i-n-e-s-q-u-e-c-í-v-e-l. Com uma canção inesquecível pelo seu desamparo paradoxal, pela sua tristeza bonita. Ficou-me sempre gravada no coração desde que a ouvi, já lá irá uma década (bolas, que o tempo passa e passa e passa!), numa vida também já passada, de tão distante já a sentir. Au temps des cerises. Pois bem, um filme num ano de filmes magníficos, num ano de um filme também magnífico, American Beauty. Mas para mim, se essa escala existir, menos magnífico, menos perfeito. A este (imensamente premiado, é certo) falta-lhe o arrojo do Happiness, falta-lhe o toque de loucura, o nonsense, os diálogos inesquecíveis, o humor fino e brilhante, negro e tenebroso. Cavernoso e genial, portanto. Um mundo de gente a esmo, gente (toda relacionada, mas nem sempre consciente disso) a lutar por se manter à superfície, por não se afundar na imensidão da tristeza e solidão da sua vida. Das suas vidas. Um mundo de gente - todos à procura da felicidade, todos felizes, todos tristemente felizes - desamparada e sofregamente solitária. Um mundo real, cruel de tão real, sórdido, sujo e corrupto. Um mundo de punhos fechados a lutar por ir continuando. Por ir vivendo. Por pairar sobre os estragos. O mundo de american beauty sem beleza. Sem flores. Sem arrumos. Sem ordem. Aqui deixo os minutos iniciais para (re)lembrar ou para espicaçar a curiosidade...

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Desejo

Chegados a esta altura do ano começam os queixumes e as lamúrias. Ora é porque chove, ora é porque as noites começam a ser frias, ora é porque os dias são mais pequenos, tudo serve de pretexto para as gentes lançarem os seus ais para o ar (e se há coisa da qual as gentes em geral gostam - e as portuguesas em particular - é de lançar ais, de queixar-se, de lamuriar-se, e então se for sobre o tempo… é o delírio! Nunca as estações estarão certas para este povo…).

Talvez por trauma infantil, mas daqueles bons, daqueles que nos fazem sorrir enlevados (que é como quem diz aparvalhados) quando pensamos neles, eu gosto desta época do ano. E gosto porque, ao contrário dos que se deprimem com o primeiro amarelecer das folhas, com a sua primeira queda, com a partida das aves, eu sorrio ao começo. Melhor: ao recomeço. E estes dias são para mim sempre cheios de esperança, sempre prenhes de tempo porque me trazem o bater do coração do antigo regresso às aulas. A excitação do regresso. O cheiro dos novos cadernos e dos novos livros. A expectativa quanto às aprendizagens que hão-de vir e ser em mim. A expectativa quanto às aventuras e às novidades. Sempre como a primeira vez. Como da primeira vez. Desde os meus seis anos (ano fatídico em que revivi o calvário a caminho da escola a cem metros de casa…) e até há bem pouco tempo assim foi. E por isso, na minha cabeça, mais ou menos inconscientemente, este é o tempo do recomeço, do renascimento, da nova etapa. Do novo. Este é o tempo da minha passagem de ano. O tempo das promessas. O tempo dos desejos. Do desejo.

Por isso, sorrio às cores quentes que já cobrem os campos. Sorrio ao arrefecimento das noites e deslumbro-me com o cheiro dos primeiros abafos rebuscados no armário. Sorrio ao calor deste já sol de inverno. Sorrio à esperança que os ciclos e a sua renovação regular suscitam. Sorrio ao salto das poças. Sorrio ao sabor a mosto da terra e à névoa que as borralheiras espalham sobre a terra. Sorrio aos primeiros assadores de castanhas, aos magustos e às suas gargalhadas. Sorrio às mãos mascarradas e às correrias. Sorrio às folhas secas por entre as páginas dos livros. Sorrio às aves que partem, porque sei que vão voltar. Sorrio à luz que esmorece, porque não há trevas sem aurora. Sorrio à morte, porque é dela e do seu mistério que nasce a vida. Sorrio à esperança, porque nunca me deixou ficar mal. E sorrio ao que vem, porque é sempre bom. E há-de ser!

Por isso vou. E deixo vir…

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Quelqu'un m'a dit *

On me dit que nos vies ne valent pas grand-chose,
Elles passent en un instant comme fanent les roses,
On me dit que le temps qui glisse est un salaud,
Que de nos chagrins il s'en fait des manteaux.

Pourtant quelqu'un m'a dit que tu m'aimais encore,
C'est quelqu'un qui m'a dit que tu m'aimais encore,

Serais ce possible alors ?

On me dit que le destin se moque bien de nous,
Qu'il ne nous donne rien, et qu'il nous promet tout,
Paraît que le bonheur est à portée de main,
Alors on tend la main et on se retrouve fou.

Pourtant quelqu'un m'a dit que tu m'aimais encore,
C'est quelqu'un qui m'a dit que tu m'aimais encore,
Serais ce possible alors ?

Mais qui est-ce qui m'a dit que toujours tu m'aimais?

Je ne me souviens plus, c'était tard dans la nuit,
J'entends encore la voix, mais je ne vois plus les
traits, "Il vous aime, c'est secret, ne lui dites pas
que je vous l'ai dit."

Tu vois, quelqu'un m'a dit que tu m'aimais encore,
Me l'a t'on vraiment dit que tu m'aimais encore
,

Serait-ce possible alors ?

On me dit que nos vies ne valent pas grand-chose,
Elles passent en un instant comme fanent les roses,
On me dit que le temps qui glisse est un salaud,
Et que de nos tristesses il s'en fait des manteaux.

Pourtant quelqu'un m'a dit que tu m'aimais encore,
C'est quelqu'un qui m'a dit que tu m'aimais encore,

Serais ce possible alors ?

Carla Bruni



* Da cabeça para o coração, do coração para a cabeça, toutjours, tout_jours, tout les jours, à toutjours.

Quase

Às vezes quase me convenço de que não te amo. Quase consigo acreditar que não és tu o meu chão. E o meu céu. E o motor do meu coração. Quase chego a crer ter-te deixado num apeadeiro qualquer, um daqueles que havia dantes nas bordas dos caminhos, com miradouros e árvores e fontes frescas… A deixar-te, que seja num paraíso, e nunca no deserto, meu amor. Porque continuas a fazer-me sorrir. E só contigo rio. Porque continuas a fazer-me chorar baixinho, primeiro, alto, depois, até a vergonha de me ouvir em pranto desafinado me calar a baba. E só contigo choro. Porque continuas a deitar-te comigo e a levantar-te comigo, e a habitares os meus sonhos, por dentro. Quase consigo acreditar que te deixei. E depois o teu cheiro vem acordar-me do delírio e apontar-me o dedo. E prosto-me por ter – sequer – ousado duvidar de mim, e peço perdão pelo pecado de quase acreditar que não te amo. E lavo-me, purifico-me, rolo-me no chão em entrega abençoada para que me seja esquecida a falta. Que alguma coisa se possa apagar nos meus dias!

Nunca deixo de pensar em ti. Constantemente, em todas as línguas, um desvario percorre-me as veias e nunca deixo de te pensar. Enches-me os dias de alegria transbordante, e à noite, antes de dormir, agradeço a felicidade única de ser contigo. Beijo-te as pálpebras, primeiro, a testa e o queixo, depois. E durmo enroscado a ti. E às vezes quase me convenço de que não te amo. Como se me pusesse à prova e quisesse testar a imensidão do meu sentir. Por ti. Sempre por ti. E assim me vou convencendo de que não te amo. De que não te quero, e de que não são os teus beijos e a tua língua que me temperam a pele. Assim me vou convencendo de que sou capaz de te abandonar. Melhor: de que sou capaz de me esquecer de ti. De me esquecer do teu perfume, da tua pele, do teu calor. Das tuas pernas e das tuas mãos. Quase consigo apagar os nossos abraços, a sua marca permanente, como eles, em mim. Quase consigo. Quase.

Tu nunca és demasiado longe.


Amado - Vanessa da Mata